quinta-feira, 17 de abril de 2014

A substituição abusiva do senso-comum pela ciência

 

Um médico morreu ontem em Aveiro devido a um enfarte no miocárdio, e os me®dia vêm dizer que “ele fumava muito”. O Manuel Forjaz morreu em um Domingo passado com um cancro no pulmão, mas os me®dia não vêm dizer que ele não fumava e que praticava jogging diário.

Ou seja, aquilo que constituía, no primeiro caso e para os me®dia, uma relação de nexo causal em relação a um determinado comportamento, já não pode existir logicamente no caso segundo — e por isso é que os me®dia não tentam justificar “cientificamente” o caso de Manuel Forjaz.

Parece-me óbvio (é uma evidência) que qualquer excesso comportamental pode ser prejudicial à saúde; mas daí a concluir que um qualquer comportamento é sempre e necessariamente prejudicial, é transformar a medicina em uma doutrina dogmática. E quando a medicina entra em dogma, isso significa que ela reconhece as suas limitações enquanto ciência — “ciência” entendida aqui no sentido de previsão dos acontecimentos futuros.

cientismoFace a isto, ¿o que fazem os ditos “cientistas”? Entram pela teoria da probabilidade adentro. Dizem eles: “é mais provável que aconteça o fenómeno A a quem tem um comportamento B, do que a outra pessoa que não tenha esse comportamento”. Ora, isto não é propriamente ciência: antes, é senso-comum.

Por exemplo, é mais provável que uma pessoa que se desloque num carro a 200 km/h, morra de um acidente do que uma pessoa que se desloque a 30 km/h. Isto é senso-comum, e já não tem nada a ver com a “ciência” enquanto “previsão do futuro”. E é senso-comum porque se baseia na experiência intersubjectiva que vem do passado: é algo que, através da experiência do senso-comum, se tornou evidente: é evidente que quem viaja a 200 km/h tem uma maior probabilidade de morrer de um acidente de viação do que se viajasse a 30 km/h.

A ciência baseia-se na estatística que, por sua vez, é fundada no passado. Não existe uma estatística feita no futuro (o que é uma contradição em termos). E, em bom rigor, não existe uma certeza do futuro, nem existe qualquer garantia de as leis da Física, por exemplo, serão aplicáveis amanhã de manhã. Ademais, as estatísticas nunca revelam um grau de probabilidade de 100% — mesmo as leis dita “certas”, como por exemplo a lei da gravidade, são abstracções de factos verificados pelo senso-comum.

A ciência tem provas sem certezas, e o ser humano tem certezas sem provas.

Vamos ver, por exemplo, a lei “certa” da gravidade. Quem quiser compreender a lei da gravidade tem que, em primeiro lugar, abstrair-se de factores como, por exemplo, a forma ou a cor dos objectos, ou a resistência ao ar. Ou seja, a lei da gravidade abstrai-se de qualquer caso real na natureza observável no planeta Terra — a lei da gravidade simplifica a realidade.

Mas a lei “certa” da gravidade nunca permitirá que a ciência possa descrever a trajectória da queda de uma ou mais folhas caducas de Outono, senão de uma forma aproximada. A ciência pode compreender o processo da queda de folhas de Outono e em um caso concreto através de princípios gerais (teóricos). Mas não pode prever exactamente a trajectória da queda de uma ou mais folhas de Outono. E mesmo esta previsão inexacta é tão geral que se poderia igualmente aplicá-la em relação a uma folha que hipoteticamente caia na Lua.

Para que seja possível formular leis a partir das observações científicas, é necessário simplificar e criar modelos que constituam uma abstracção da complexidade da realidade. Ou seja, a ciência simplifica a realidade. E os modelos, por sua vez, constituem meras aproximações descritivas em relação à verdade dos fenómenos sob investigação científica, sem que a ciência possa, jamais e em tempo algum, chegar a compreender a verdade completamente.

Esta verdade não é inventada pelos cientistas — por exemplo, o Idealismo defende a ideia segundo a qual a verdade de um fenómeno é produzida pelo observador do fenómeno, o que é uma afirmação absurda, na medida em que seria o cientista a produzir o objecto da investigação, e porque (segundo o Idealismo) o objecto sem a sua verdade, é impensável. O cientista não é o criador do mundo, mas simplesmente aquele que investiga o mundo.

Esta verdade está acima do espaço-tempo: é intemporal. E é esta verdade intemporal que o senso-comum intui, sem que seja necessário que a ciência venha tomar-lhe o lugar mediante a reivindicação de uma autoridade de direito que é ilegítima.

Como se pode ver, eu posso estar de acordo com Wittgenstein acerca do princípio da necessidade de afirmação do primado do senso-comum na nossa vida quotidiana — mas em vez de criticar a “usurpação da metafísica tradicional” (crítica feita por Wittgenstein à metafísica) em relação ao senso-comum, critico antes a transformação da ciência em uma espécie de metafísica exclusivista; e é isso que o cientismo faz: pretende substituir-se à metafísica filosófica tradicional, ao mesmo tempo que pretende tornar irracional o senso-comum.

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