quinta-feira, 5 de março de 2015

O retorno da nossa cultura ao neolítico

 

Para o cidadão comum é muito difícil compreender o que se está a passar com a nossa cultura (ocidental); e outros, não a compreendendo, pensam que alguns fenómenos culturais actuais são algo de “novo”.  Vejamos este caso:

“A esperança média de vida é cada vez maior, mas a população continua a crescer e os cemitérios a ficarem sobre-lotados. Se a cremação não é algo que lhe agrade, esta pode ser uma opção a ter em conta.

O projecto italiano Capsula Mundi quer desenvolver uma cápsula orgânica e biodegradável que transforma um corpo em decomposição em nutrientes para uma árvore.”

Gostava de ‘reencarnar’ numa árvore?

O que se está a passar hoje na nossa cultura antropológica (principalmente na Europa) não é apenas um retorno a um monismo: é sobretudo um retorno cultural às religiões do neolítico da mãe-terra.

A questão do sentido (da vida) está na base não só das religiões propriamente ditas, mas também das religiões políticas. Ao longo de dois milhões de anos da Pré-história da humanidade, os nossos antepassados aperceberam-se da sua especificidade no contexto do mundo orgânico que os rodeava.  Aquilo que designamos hoje de “sentido” (da vida) passou-se a exprimir claramente a partir do homo sapiens, em experiências momentâneas indistintas, no medo e na esperança; e fenómenos deste tipo eram sempre acompanhados por rupturas da vida  ou de situações-limite.

A partir do paleolítico médio tornou-se claro que os vestígios de enterros rituais revelavam que a morte tinha que ser superada religiosamente, como aliás continua a acontecer hoje embora com uma hermenêutica diferenciada pelo Cristianismo. Ou seja, desde muito cedo verificaram-se “ritos de passagem” que configuravam religiosamente a vida.

A partir do paleolítico superior, as religiões giravam em torno da veneração das forças feminino-maternais da Natureza (as forças mana-tabu do culto da mãe-terra). Esta tradição de religiosidade ctónica manteve-se até ao neolítico, embora neste período último, tivessem mais associadas à  vegetação importante para a agricultura e assumissem progressivamente traços antropomórficos (traços humanos). Os mitos desta tradição estavam relacionados com a morte e a continuação da vida — como mostram as ofertas de ocre, a orientação propositada dos mortos, ou as oferendas fúnebres.

Os animais não eram enterrados! Só os representantes da espécie humana eram enterrados, o que revelava uma consciência do lugar especial que os seres humanos ocupavam na Natureza — assim como a ideia segundo a qual  a morte não implicaria o fim definitivo, o que constitui os primeiros inícios de uma esperança da validade e permanência da História.

Porém, a orientação religiosa ctónica, a veneração da mãe-terra, assim como a esperança em um renascimento biológico, mostram, simultaneamente, que o poder da Natureza viva era dominante. Os seres humanos tinham surgido dela, regressavam a ela e esperavam novo nascimento no seu seio materno.

A esperança (e o sentido) que existia naquela época era aquela oferecida pelos processos orgânicos objectivos — a prática religiosa desta fase ainda não estabelecia uma distinção entre as especificidades da História e a constituição natural. A “autoconsciência cultural” do ser humano de antanho ainda não se tinha diferenciado suficientemente ao ponto de se compreender a si própria em oposição à  orientação natural.


As religiões superiores surgiram a partir de 3.000 a.C., e foram a base de uma nova auto-compreensão humana. Os seres humanos adquiriram uma consciência crescente da sua especificidade no contexto do resto da Criação. A mistura indistinta da orientação histórica com a natural foi substituída por uma sensação de separação entre os dois domínios, cuja consequência foi uma compreensão da existência humana sob o signo da divisão (entre História, por um lado, e Natureza, por outro  lado).

As religiões superiores (com excepção da religião de Yahweh antes do exílio na Babilónia) apostam já também em divindades antropomórficas, e em uma perspectiva escatológica, assim como em uma relevância da História e do agir histórico.


Com a religião de Yahweh depois do exílio, surge o primeiro monoteísmo, a noção de História linear (o tempo passou a ser considerado menos cíclico do que linear), e inauguram-se as religiões universais caracterizadas por monismos, por um lado, e por monoteísmos, por outro  lado.

As religiões monistas consideram que existe uma força divina omnipresente face ao indivíduo, um princípio impessoal e objectivo subjacente ao universo e ao ser humano. O ser humano tem que reconhecer esta situação e assumir o comportamento adequado face à  mesma: tem de compreender que a sua incerteza, a sua falta de sentido e o sofrimento têm origem na separação em relação a esse princípio impessoal e objectivo, considerado o UNO (a unidade). Esta separação em relação ao Uno  tem que ser superada através da libertação do indivíduo face a tudo o que o prende à  História, e portanto, também a si mesmo e aos outros.

O que se procura — nas religiões universais monistas — é uma não-separação entendida de uma forma mais ou menos radical, ou uma identidade supra-pessoal ou não-pessoal com fundamento único no Uno.

As religiões monoteístas (que surgiram depois dos primeiros monismos), pelo contrário, recusam a omnipotência daquilo que é objectivo (a omnipotência da Natureza) e apostam na validade absoluta de um Deus pessoal, e portanto, historicamente singular. Este Deus pode agir, amar, perdoar, de forma análoga a uma pessoa, e abre ao indivíduo a perspectiva de uma validade e permanência escatológica. A Natureza poderosa, a cujas regras o ser humano também está submetido na sua vida terrena, perde o seu poder perante Deus.


O que se está a passar hoje na nossa cultura antropológica (principalmente na Europa) não é apenas um retorno a um monismo: é sobretudo um retorno cultural às religiões do neolítico da mãe-terra.

Com o pós-modernismo, com a consequente eliminação dos tabus como limites da existência, e com a desconstrução do sujeito, a religiosidade europeia que marca a actual cultura antropológica sofreu uma entropia que tende a não dissociar a História e a Natureza, tal como aconteceu com os nossos parentes do neolítico. A diferença é que hoje temos computadores e eles tinham pedras lascadas.

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