sexta-feira, 24 de novembro de 2017

O Anselmo Borges e os mitos acerca de Lutero

 

O Anselmo Borges escreve aqui um textículo acerca de Lutero. Como sempre, nele, aplica-se o poema do Aleixo: “Prá mentira ser segura / e atingir profundidade, / tem que trazer à mistura / qualquer coisa de verdade”. No caso do texto em análise, a maior parte dos factos narrados são verdadeiros, “mas o diabo está nos detalhes”.

mascara-de-morte-de-lutero-web1/ O Anselmo Borges começa por “abençoar” o Lutero por este se ter indignado contra a política papal-mendicante das indulgências; mas, logo a seguir, o Anselmo Borges reconhece que o Lutero apoiou a repressão da revolta dos camponeses alemães que causou “a morte a mais de cem mil camponeses”.

Para Lutero, os fins justificavam quaisquer meios; e os fins passavam pela unificação política da Alemanha. Lutero foi o precursor de Fichte e de Hegel.

Ou seja, Lutero foi um filósofo político, e não propriamente um teólogo. Foi a política (no sentido mais redutor) que o motivou e o orientou. A própria doutrina teológica de Lutero é incoerente (ao contrário do que se passava com a doutrina católica de antanho), e foi essa incoerência dele que alimentou a Contra-reforma.

2/ É certo que o papado do Renascimento, em geral, deixou muitíssimo a desejar; mas a verdade é que o movimento de Lutero foi político, embora invocando incoerentemente princípios religiosos e teológicos. Portanto, é absurdo que o Anselmo Borges nos dê a ideia de que Lutero não desejava a ruptura com a Igreja de Roma, e que foi obrigado a isso por amor aos princípios teológicos da Igreja — os princípios que nortearam Lutero foram estritamente políticos, embora deitasse mão de argumentos teológicos e éticos para os justificar. A própria defesa da Bíblia em língua alemã (proposta por Lutero) teve intenções políticas, porque foi com Lutero que surgiu o HochDeutsch (que passou a unir culturalmente os alemães) em oposição aos muitos PlattDeutsch regionais (falta ao Anselmo Borges formação em Germânicas).

3/ Lutero foi um “teólogo” que se suicidou — coisa rara, aliás... não me lembro de um outro teólogo cristão que se tenha suicidado. Provavelmente, se Lutero fosse vivo hoje seria adepto da legalização da eutanásia.

Sabemos o que a doutrina da Igreja Católica sempre afirmou acerca do suicídio. Ao contrário do que defende o Anselmo Borges, não existem praticamente “efeitos positivos” da doutrina de Lutero, nem podemos dizer que Lutero defendeu a liberdade em si mesma, porque a sua nova doutrina submeteu a nova igreja alemã ao poder do príncipe (ou seja, do Estado).

4/ Dizer que “Lutero defendeu a liberdade” é um eufemismo de muito mau gosto, quanto mais não seja porque o conceito católico e tomista de “liberdade” foi anulado pela teoria pseudo-teológica de Lutero, substituído por um determinismo implícito que floresceu exuberantemente mais tarde nas teorias de Calvino.

“Para poder abusar da sua liberdade, o Homem necessita de se converter a doutrinas deterministas.
O Homem só se rende aos seus demónios quando crê ceder a um decreto divino. O determinismo é a ideologia das perversões humanas”.
Nicolás Gómez Dávila

5/ A “força da música na liturgia” (a polifonia) nasceu na Igreja Católica francesa, no decorrer do século XV. Ao contrário do que diz o Anselmo Borges, a maioria dos reformadores fez tudo para aniquilar o acompanhamento musical da missa (o Anselmo Borges tem lacunas no conhecimento acerca da Idade Média). A maior parte dos que (nos séculos XV e XVI) contribuíram para o acompanhamento musical polifónico da missa eram católicos extremamente ortodoxos.

Em 1500 (antes de Lutero) a missa polifónica era muitas vezes composta por melodias seculares, embora permanecendo na órbita do sagrado — e por isso foi vigorosamente atacada pela maioria dos reformadores. É certo que o Concílio de Trento propôs a abolição da polifonia na missa, mas depois recuou perante a Missa Papae Mercelli, de Palestrina.

Erasmo de Roterdão (um católico progressista daquela época, que foi convidado pessoalmente por Lutero a aderir à “Reforma”, mas não aceitou o convite) não encontrava justificação para a polifonia nas escrituras cristãs, e achava que a música cristã se deveria confinar ao canto dos salmos e nada mais do que isso. Esta ideia de Erasmo viria a dominar a atitude da maior parte dos reformadores do século XVI e a influenciar católicos como Thomas More. Por exemplo, o Requiem durante a missa foi uma invenção pós-tridentina inspirada pela insistência da Contra-reforma na missa entendida como um sacrifício — o que Lutero negou: para Lutero, a missa não era nunca um sacrifício, mas era toda ela um sacramento.

Em suma: a ideia de Anselmo Borges segundo a qual “a força da música na liturgia” foi um fenómeno luterano, é falsa.


Imagem: máscara de morte de Lutero. Texto do Anselmo Borges em ficheiro PDF.

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