O Marquês de Sade (Donatien Alphonse François de Sade) teve um precursor desde a primeira metade do século XVIII: Julien Offray de La Mettrie. Quando se fala no Marquês de Sade, é imperativo que se fale, em primeiro lugar, em La Mettrie, que ao escrever o seu livro “O Homem-Máquina”, adoptou um materialismo mecanicista que, por sua vez, teve origem na visão mecanicista do corpo do ser humano segundo Descartes. La Mettrie influenciou o pensamento do seu tempo, incluindo o de Voltaire, Montesquieu, Diderot, Sade, etc..
A vida é, segundo La Mettrie, uma auto-estrada sem limite de velocidade:
«Dado que os remorsos são um vão remédio para os nossos males, destruamo-los, pois. (…) Se as alegrias bebidas na natureza são crimes, o prazer, a felicidade dos homens residem em ser criminosos.» (La Mettrie, “L'Homme-Machine”)
A história das ideias da modernidade é um absurdo pegado. E é esse absurdo que estamos todos a pagar hoje. Eu acredito piamente que o trabalho dos “porcos de Epicuro”, desde finais do século XVII até ao século XX, foi patrocinado pessoalmente pelo Diabo: ou seja, penso que não há aqui um “conspiração humana” premeditada e que venha já do século XVIII, no sentido de controlar a sociedade: em vez disso, estamos em presença de uma obra diabólica que transcende qualquer capacidade do ser humano de prever o futuro.
Montesquieu escreve, nas suas “Cartas Persas”:
“Todos estes pensamentos me animam contra esses doutores que representam Deus como um ser que faz um exercício tirânico do seu poder (…) e, nas suas opiniões contraditórias, o representam tão depressa como um ser mau tão depressa como um ser que odeia o mal e o pune. Quando um homem se examina, que satisfação para si mesmo descobrir que tem um coração justo! Esse prazer, por muito severo que seja, deve extasiá-lo: vê-se acima dos tigres e dos ursos. Sim, Rhedi, se eu tivesse a certeza de seguir sempre inviolavelmente esta Equidade que tenho sob os meus olhos, acreditar-me-ia o primeiro dos homens”.
Temos aqui a tentativa de substituir a moral pelo medo da polícia (a arbitrariedade da lei substitui a ética e a moral), por um lado, e por outro lado, constatamos aqui a “moral do sentimento” (que Rousseau seguirá também!) em todo o seu esplendor — o mesmo tipo de “moral do sentimento” que a Igreja Católica do cardeal Bergoglio parece adoptar hoje, e que se expressa na opinião do ateu Scalfari segundo a qual “o papa Francisco aboliu o pecado”. A (tentativa da) abolição do remorso é uma qualidade diabólica. A “moral do sentimento” de Montesquieu é relativista na sua essência, e o Marquês de Sade, bom leitor, felicitará Montesquieu embora com malícia. É neste sentido ideológico que eu classifico a acção do cardeal Bergoglio de “colaboração com o diabólico”.
A “moral do sentimento” é uma versão não confessional do Evangelho:
“Um homem verdadeiramente virtuoso deveria ser levado a socorrer o mais desconhecido dos homens como o seu próprio amigo; há, no seu coração, um empenhamento que não tem necessidade de ser confirmado por palavras, juramentos, nem testemunhos exteriores, e limitá-lo a um certo número de amigos, é desviar o seu coração de todos os outros homens; é separá-lo do tronco e atá-lo aos ramos.” — Montesquieu, “Mes Penseés”.
Esta versão não confessional do Evangelho (que está na base ideológica do Existencialismo), do “amor ao próximo” entendido em si mesmo e sem uma causa racional, constitui um elemento decisivo para a construção da “felicidade” terrestre e prometaica. Desde logo, o conceito de “felicidade” de Montesquieu é ambíguo, psicologicamente ambivalente, relativista e sem qualquer escoramento na Razão humana, mas tão só no sentimento subjectivo. La Mettrie diria o mesmo que Montesquieu, por outras palavras: a felicidade deve-se ao prazer, conforme “aos nossos órgãos (que) são susceptíveis de um sentimento”. Temos aqui a “moral do sentimento”, vista de um outro ângulo. “A felicidade está, como a voluptuosidade, ao alcance de todos, dos bons e dos maus”. 1
E escreve o Marquês de Sade sobre Montesquieu e La Mettrie: 2
“Amável La Mettrie, profundo Helvécio, sábio e sabedor Montesquieu, porque é que penetrados por esta verdade, mais não haveis feito do que indicá-la nos vossos livros divinos?”
Grande leitor de Rousseau e de Montesquieu, Sade inverte a “moral do sentimento”: “a felicidade adquire-se não importa às custas de quem”. Para Sade, “o inferno são os outros” (Jean-Paul Sartre copiou esta frase de Sade). Mas essa inversão da “moral do sentimento” só é possível porque a própria moral do sentimento contém em si mesma a possibilidade da sua inversão, ao retirar da ética qualquer fundamento racional e ao baseá-la em uma ambiguidade relativista e subjectivista. É esta a razão por que eu critico a ambiguidade do cardeal Bergoglio: a ambiguidade, em ética, é diabólica.
Notas
1. “Discours sur le bonheur”
2. “Histoire de Juliette ou les Prosperités du vice”
Orlando, além de “Histoire de Juliette ou les Prosperités du vice”, quais são as obras mais representativas do pensamento de Sade?
ResponderEliminarObrigado.
Não sei. Só conheço essa (3 volumes), e comprei muito barato em um alfarrabista na zona de Saint Denis, em Paris. Mas você pode consultar a Wikipédia e encontrará com certeza essa informação.
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