quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

A ambiguidade, em ética, é diabólica

 

O Marquês de Sade (Donatien Alphonse François de Sade) teve um precursor desde a primeira metade do século XVIII: Julien Offray de La Mettrie. Quando se fala no Marquês de Sade, é imperativo que se fale, em primeiro lugar, em La Mettrie, que ao escrever o seu livro “O Homem-Máquina”, adoptou um materialismo mecanicista que, por sua vez, teve origem na visão mecanicista do corpo do ser humano segundo Descartes. La Mettrie influenciou o pensamento do seu tempo, incluindo o de Voltaire, Montesquieu, Diderot, Sade, etc..

A vida é, segundo La Mettrie, uma auto-estrada sem limite de velocidade:

«Dado que os remorsos são um vão remédio para os nossos males, destruamo-los, pois. (…) Se as alegrias bebidas na natureza são crimes, o prazer, a felicidade dos homens residem em ser criminosos.» (La Mettrie, “L'Homme-Machine”)

A história das ideias da modernidade é um absurdo pegado. E é esse absurdo que estamos todos a pagar hoje. Eu acredito piamente que o trabalho dos “porcos de Epicuro”, desde finais do século XVII até ao século XX, foi patrocinado pessoalmente pelo Diabo: ou seja, penso que não há aqui um “conspiração humana” premeditada e que venha já do século XVIII, no sentido de controlar a sociedade: em vez disso, estamos em presença de uma obra diabólica que transcende qualquer capacidade do ser humano de prever o futuro.

Montesquieu escreve, nas suas “Cartas Persas”:

“Todos estes pensamentos me animam contra esses doutores que representam Deus como um ser que faz um exercício tirânico do seu poder (…) e, nas suas opiniões contraditórias, o representam tão depressa como um ser mau tão depressa como um ser que odeia o mal e o pune. Quando um homem se examina, que satisfação para si mesmo descobrir que tem um coração justo! Esse prazer, por muito severo que seja, deve extasiá-lo: vê-se acima dos tigres e dos ursos. Sim, Rhedi, se eu tivesse a certeza de seguir sempre inviolavelmente esta Equidade que tenho sob os meus olhos, acreditar-me-ia o primeiro dos homens”.

Temos aqui a tentativa de substituir a moral pelo medo da polícia (a arbitrariedade da lei substitui a ética e a moral), por um lado, e por outro lado, constatamos aqui a “moral do sentimento” (que Rousseau seguirá também!) em todo o seu esplendor — o mesmo tipo de “moral do sentimento” que a Igreja Católica do cardeal Bergoglio parece adoptar hoje, e que se expressa na opinião do ateu Scalfari segundo a qual “o papa Francisco aboliu o pecado”. A (tentativa da) abolição do remorso é uma qualidade diabólica. A “moral do sentimento” de Montesquieu é relativista na sua essência, e o Marquês de Sade, bom leitor, felicitará Montesquieu embora com malícia. É neste sentido ideológico que eu classifico a acção do cardeal Bergoglio de “colaboração com o diabólico”.

A “moral do sentimento” é uma versão não confessional do Evangelho:

“Um homem verdadeiramente virtuoso deveria ser levado a socorrer o mais desconhecido dos homens como o seu próprio amigo; há, no seu coração, um empenhamento que não tem necessidade de ser confirmado por palavras, juramentos, nem testemunhos exteriores, e limitá-lo a um certo número de amigos, é desviar o seu coração de todos os outros homens; é separá-lo do tronco e atá-lo aos ramos.” — Montesquieu, “Mes Penseés”.

Esta versão não confessional do Evangelho (que está na base ideológica do Existencialismo), do “amor ao próximo” entendido em si mesmo e sem uma causa racional, constitui um elemento decisivo para a construção da “felicidade” terrestre e prometaica. Desde logo, o conceito de “felicidade” de Montesquieu é ambíguo, psicologicamente ambivalente, relativista e sem qualquer escoramento na Razão humana, mas tão só no sentimento subjectivo. La Mettrie diria o mesmo que Montesquieu, por outras palavras: a felicidade deve-se ao prazer, conforme “aos nossos órgãos (que) são susceptíveis de um sentimento”. Temos aqui a “moral do sentimento”, vista de um outro ângulo. “A felicidade está, como a voluptuosidade, ao alcance de todos, dos bons e dos maus”. 1

E escreve o Marquês de Sade sobre Montesquieu e La Mettrie: 2 

“Amável La Mettrie, profundo Helvécio, sábio e sabedor Montesquieu, porque é que penetrados por esta verdade, mais não haveis feito do que indicá-la nos vossos livros divinos?”

Grande leitor de Rousseau e de Montesquieu, Sade inverte a “moral do sentimento”: “a felicidade adquire-se não importa às custas de quem”. Para Sade, “o inferno são os outros” (Jean-Paul Sartre copiou esta frase de Sade). Mas essa inversão da “moral do sentimento” só é possível porque a própria moral do sentimento contém em si mesma a possibilidade da sua inversão, ao retirar da ética qualquer fundamento racional e ao baseá-la em uma ambiguidade relativista e subjectivista. É esta a razão por que eu critico a ambiguidade do cardeal Bergoglio: a ambiguidade, em ética, é diabólica.

Notas
1. “Discours sur le bonheur”
2. “Histoire de Juliette ou les Prosperités du vice”

2 comentários:

  1. Orlando, além de “Histoire de Juliette ou les Prosperités du vice”, quais são as obras mais representativas do pensamento de Sade?

    Obrigado.

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  2. Não sei. Só conheço essa (3 volumes), e comprei muito barato em um alfarrabista na zona de Saint Denis, em Paris. Mas você pode consultar a Wikipédia e encontrará com certeza essa informação.

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