O Desidério Murcho fala aqui da diferença entre “epistemologia da religião”, por um lado, e da “metafísica da religião”, por outro lado. Desde logo devemos saber o significa “epistemologia”, porque este termo tem hoje dois significados ligeiramente diferentes.
Na Europa continental — sobretudo em França —, “epistemologia” significa a análise do "espírito científico": estudo dos métodos, das crises, da História das Ciências Modernas, ou o estudo de uma ciência em particular: por exemplo, epistemologia da matemática, epistemologia da História, etc..
No mundo anglo-saxónico, “epistemologia” mantém ainda um significado semelhante ao de “gnoseologia”, isto é, a análise ou estudo dos processos evolutivos gerais do conhecimento. Desidério Murcho escreve o seguinte:
“O tema central da epistemologia da religião é a adequação da crença em divindades.”
Devemos, dentro do possível, simplificar a nossa linguagem, por forma a evitarmos ambiguidades e/ou anfibolias. “Adequação” significa, neste caso, “correspondência racional”.
Desidério Murcho poderia ter escrito o seguinte: “o tema central da epistemologia da religião é a correspondência racional das crenças religiosas em relação às respectivas divindades”, o que significa que, neste sentido, a “epistemologia da religião” aborda, não o processo evolutivo geral das religiões ao longo do tempo (pré-história e história), mas antes dedica-se à análise lógica e racional da relação entre as diversas religiões (independentemente da sua posição no continuum temporal), por um lado, e as respectivas divindades ou divindade, por outro lado.
Portanto, estamos em presença do conceito de “epistemologia” como estudo de um método segundo o qual a religião faz corresponder logicamente a sua filosofia, por um lado, com as suas divindades, por outro lado. Ou seja, aplica-se aqui a noção francesa de “epistemologia”. E por isso é que ele escreve:
“Do simples facto de existir uma divindade não se segue que seja epistemicamente adequado acreditar na sua existência, e do simples facto de ser epistemicamente adequado acreditar na existência de uma divindade não se segue que essa divindade existe.”
Quando o facto de se acreditar na existência (“existência” no sentido de “realidade”, e não necessariamente como “objecto”) de uma divindade depende de uma análise lógica (“epistemicamente adequado”), estamos então perante o conceito científico (francês) de “epistemologia”, por um lado, e por outro lado, o facto de não ser epistemicamente (no sentido francês) adequado acreditar na existência de uma divindade, isso não significa que essa adequação não possa vir a surgir no futuro (em função de novas diferenciações culturais e mesmo com o contributo de descobertas da ciência), ou seja, que no futuro uma determinada inadequação lógica e racional entre uma determinada crença religiosa e as suas actuais divindades, não se possa transformar em uma adequação, e em função de novas diferenciações culturais, e de novos dados acerca da realidade que podem provir de novos fenómenos metafísicos ou mesmo da evolução da ciência.
Em suma, e em última análise, é a noção anglo-saxónica de “epistemologia” que se aplica ao estudo das religiões (o racionalismo e a lógica aplicáveis ao estudo das religiões estão sempre colocados entre parêntesis).
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