sábado, 22 de agosto de 2015

Um chimpanzé não é uma pessoa

 

O Ludwig Krippahl, agora que é militante notório do partido “Livre”, já se dá ao luxo de contraditar directamente professores universitários de filosofia, como por exemplo o Pedro Galvão. Com toda a sinceridade possível: eu quero lá saber se o meu interlocutor é professor ou se é varredor de ruas! O que me interessa saber é o resultado das suas ideias.

Eu critico principalmente — sublinho: principalmente — as consequências das ideias, e não os eventuais erros de construção ideológica. Por exemplo, seria estúpido que criticássemos a teoria da relatividade apenas pelos eventuais erros de Einstein durante a sua construção.

As definições são importantes, na filosofia como em tudo na vida. Sem definições não sabemos do que estamos a falar. Mas não devemos abusar das definições, porque um conceito depende doutro conceito, e este doutro, ad infinitum. Se nos enredarmos nas definições, não saímos delas. Mas isto não significa que possamos prescindir das definições — nomeadamente das definições reais. Mas é um facto que, em geral, as pessoas de Esquerda — como é o caso do Ludwig Krippahl — têm horror às definições, porque as definições limitam o poder fáctico da ideologia política.

O Ludwig Krippahl começa por dizer que, pelo facto (pelo menos aparente) de um chimpanzé se reconhecer (a si mesmo) ao espelho, tem autoconsciência. E, neste sentido, diz o Ludwig Krippahl que o chimpanzé é uma pessoa — assim como o ser humano é uma pessoa enquanto tem autoconsciência.

Há aqui um problema lógico/metafísico que é descartado — tanto por Pedro Galvão no seu livro, como por Ludwig Krippahl. Analisar a ética sem a lógica, é poesia ou ideologia política. Já iremos ao problema lógico, no fim do texto.

Dois equívocos: 1/ o Ludwig Krippahl confunde “comportamento raciomórfico” — que todos os animais têm; todos! —, por um lado, com “autoconsciência”, por outro lado. 2/ A “pessoa” é definida em função da sua autoconsciência: quem não tem autoconsciência não é pessoa.

O segundo equívoco tem origem directa em Kant. Dizia ele (Kant) que “a pessoa é aquele sujeito cujas acções podem ser imputadas”; e a pessoa tem que ter uma autoconsciência contínua: “aquilo que tem consciência da identidade numérica de si próprio em vários momentos, é uma pessoa”. Ou seja, segundo Kant, o chimpanzé não é pessoa (porque as suas acções não podem ser imputadas, não tem responsabilidade moral) e o feto humano também não (porque não tem consciência da identidade numérica de si próprio em vários momentos). E não só o feto humano: um bebé recém-nascido, segundo Kant, também não é uma pessoa.

O primeiro equívoco do Ludwig Krippahl tem a ver com a “autoconsciência do chimpanzé”.

Conforme escrevi aqui:


“Os animais ditos irracionais têm mobilidade, expressão e comunicação. E até têm simbolismos. Por exemplo, uma bactéria tem uma mobilidade que um bebé recém-nascido não tem; mas isso não faz da bactéria um animal mais valioso (valor) do que um ser humano recém-nascido.

“A linguagem humana não é apenas expressão, e não é apenas comunicação — os animais também as têm. Existe mesmo um simbolismo ritualístico nos animais, embora seja um simbolismo iludente: por exemplo, as borboletas simulam simbolicamente os olhos. Mas o ser humano foi o único que “deu um passo” no sentido de verificar as suas próprias teorias através de argumentos críticos no que respeita à verdade objectiva (a função argumentativa, que os animais não têm).”

No ser humano “surgem” as proposições descritivas, ou seja, a função representativa, segundo Karl Bühler: frases que descrevem um estado de coisas objectivo, que pode, ou não, corresponder aos factos; ou seja, de proposições que podem ser falsas ou verdadeiras. É aqui que reside a principal diferença, do ponto de vista formal, do ser humano em relação aos animais.”

O chimpanzé não possui a função representativa, e por isso não tem autoconsciência. O reconhecer-se ao espelho, por parte de um chimpanzé, é um comportamento raciomórfico superior: talvez possamos até classificar de “consciência”; mas não é autoconsciência. Há uma diferença entre consciência de si, por um lado, e autoconsciência, por outro lado.

O desempenho mais importante do ser humano é a formação de juízos — que o chimpanzé não possui. Sem pensamento, não existe qualquer filosofia e qualquer ciência. A autoconsciência é a condição lógica de todo o mundo, porque sem os seus juízos não saberíamos se e como existe o mundo, incluindo o ser humano e o chimpanzé.

Dizer que o chimpanzé tem autoconsciência — como diz o Ludwig Krippahl — é um absurdo próprio da irracionalidade cientificista que está na moda. Cientismo puro.


A ciência descreve as coisas na terceira pessoa (ele, ela, eles, elas). Porém, a autoconsciência, que é própria do ser humano, só pode ser descrita adequadamente na primeira pessoa (eu, nós): só assim é possível adquirir o conhecimento directo do que “eu sou” e do que significa ser um “eu” ou um “próprio”. Pelo contrário, todo o conhecimento científico sobre a autoconsciência (o “eu”) é apenas indirecto, em segunda mão. Este é o problema do Ludwig Krippahl e de todas as afirmações científicas sobre a autoconsciência do ser humano.

Isto não significa que a perspectiva da ciência sobre a autoconsciência não tenha qualquer valor! As afirmações científicas só são honestas se não perderem de vista que não descrevem o mundo como ele é em si mesmo, mas apenas sob o aspecto da objectividade — a qual não é tudo. A objectividade da ciência é como um plaina do carpinteiro: o subjectivo, que é inacessível, é simplesmente aplainado.

A autoconsciência é uma experiência originária (primordial) que antecede a experiência objectiva; é uma experiência comprovável a nível intersubjectivo, tanto em termos lógicos como em termos existenciais.

Ter autoconsciência não é apenas reconhecer-me ao espelho: é sobretudo ter a consciência de não poder ver-me a mim próprio tal como sou visto a partir do exterior. Na ciência, este problema é descrito através do conceito de “auto-referencialidade”. Por exemplo, a seguinte frase:

“Houve um tempo em que eu não vivia, e chegará um tempo em que eu não viverei”.

Na tentativa de pensar a minha não-existência, tenho que inventar uma imagem de mim próprio como se fosse outra pessoa. Porém, é um facto que nunca poderei sair de mim próprio de modo a pensar-me a partir do exterior. Se me penso a partir do exterior, não me penso a mim; se me penso a partir do meu interior, então não posso pensar como seria não-existir. A auto-referencialidade é uma característica da autoconsciência.

Segundo o matemático Gödel, todos os sistemas auto-referenciais são insondáveis; e pode-se concluir que a insondabilidade da autoconsciência é uma característica da pessoa, que é, por definição, humana. Dizer que um chimpanzé é uma pessoa é atribuir-lhe características objectivas e subjectivas que o animal não tem.


Finalmente, vamos ao erro de Kant que marcou a modernidade.

Kant foi o precursor do epifenomenalismo que marcou mais tarde o darwinismo: a alma (a autoconsciência), segundo Kant, do ser humano é um processo bioquímico e nada mais. Por isso, diz ele implicitamente, um feto ou um recém-nascido não são pessoas, porque são moralmente inimputáveis. Ou seja, somos apenas o resultado da química completamente impessoal que se processa na nossa cabeça; a percepção de ser alguém é apenas um truque biológico da programação da evolução no nosso cérebro.

Tenhamos em atenção o seguinte:

As informações provenientes dos órgãos sensoriais são transmitidas ao cérebro, onde são “analisadas” por cerca de 15 mil milhões (15 biliões, no Brasil) de células nervosas, a que chamamos de “neurónios”. Essas células estão ligadas entre si através de cerca de 10^15 (1 seguido de 15 zeros) de pontos de transmissão, a que chamamos de “sinapses”. Seriam necessários mais de 30 milhões de anos se quiséssemos registar as sinapses de um só cérebro humano à velocidade de um sinapse por segundo. Se quiséssemos testar os estados possíveis de apenas 120 neurónios, necessitaríamos de um super-computador que precisaria de 20 mil milhões de anos para efectuar essa operação. Se quiséssemos testar todos os neurónios, o número de operações seria infinito.

Quando determinados neurónios “disparam” no cérebro, surge aquilo a que chamamos o “eu” — a autoconsciência, ou a consciência de ser uma pessoa. Produzimos decisões da vontade, sentimentos, ideias, e sobretudo a consciência do presente, ou seja, a capacidade de resumir num “agora” acontecimentos ocorridos no espaço de alguns segundos. Um chimpanzé não tem a noção do “agora”; nem sabe que vai certamente morrer, um dia destes.

Surge aqui o problema fundamental da ciência cientificista (cientismo): como se transformam processos físicos e químicos no cérebro em conteúdos da minha consciência nos quais me reconheço? Como se pode transformar algo impessoal em algo pessoal?

Karl Popper chamou à atenção para o facto de esta concepção cientificista da autoconsciência não poder ter qualquer sentido se obedecer aos seus próprios pressupostos: se as minhas ideias são produtos, ou seja, efeitos da química que se processa na minha cabeça, nem sequer é possível discutir o epifenomenalismo: este não pode ter qualquer pretensão à verdade, visto que as provas do epifenomenalismo são também química pura. Se alguém defende uma teoria contrária à do Ludwig Krippahl, por exemplo, também tem razão, dado que a sua química apenas chegou a um resultado diferente.

Talvez seja por isso que o Ludwig Krippahl tem horror às definições: o resultado da química dos cérebros dos outros pode ser diferente da química do cérebro dele: mais vale prevenir do que remediar...!

Portanto, a ideia epifenomenalista de Kant segundo a qual “só é pessoa quem é imputável moralmente”, conduz ao Absurdistão. Segundo esta ideia, um ser humano chamado Maria, que tem a doença de Alzheimer em estado avançado, não é pessoa. O argumento pode ser o seguinte: “a Maria já foi pessoa, mas agora não é”. De modo semelhante, “um feto agora não é pessoa, embora venha a ser pessoa”. Há aqui um erro lógico/metafísico que consiste na confusão entre “essência”, por um lado, e “acidente”, por outro lado.

A essência é aquilo que constitui a natureza permanente de um ser ou de uma condição existencial (conceito), independentemente do que lhe acontece. Opõe-se à noção de acidente. Podemos falar de “essência do ser humano”. Em cada ser (por exemplo, um chimpanzé, um ser humano, etc.), distinguimos uma essência, e uma existência que a essência pode comportar, ou não.

O acidente designa uma “particularidade segunda” relativamente a um objecto ou a um ser, na medida em que aparece e desaparece ao mesmo tempo que ele – por exemplo, o facto de um tecido ser verde ou azul; ou o facto de uma folha de árvore ser verde e passar a vermelha (o que não muda a essência da folha). Estes dois exemplos mostram que há "acidentes artificiais" e "acidentes naturais".

Os acontecimentos da vida humana não passam dos acidentes do indivíduo vivo – por exemplo, a minha visita a Paris é um acidente da minha vida – mas as características físicas de Paris também se constituem em acidente.

Os acidentes não mudam a essência de um ser. E a essência do ser humano chamado Maria mantém-se a mesma desde a concepção até à morte, apesar do acidente da doença de Alzheimer.

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