terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Hannah Arendt, a Razão de Estado e a "Vontade Geral"

 

“Ce qui est propre à notre temps c'est l'intrusion massive de la criminalité dans la vie politique. Je veux parler ici de quelque chose qui dépasse de loin ces crimes, que l'on cherche toujours à justifier par la raison d'Etat, en prétextant que ce sont des exceptions à la règle”.

Hannah Arendt, a propósito da Razão de Estado

O conceito de Razão de Estado germinou claramente a partir do século XIII, por exemplo, com João de Salisbúria; mas teve origem no conceito de “utilitas publica” de Tácito, Díon, Cassius, Plínio, Marco Aurélio, e no jurista Calístrato.

O conceito de “utilitas publica” (interesse público, ou utilidade pública) não era, na Antiguidade Tardia, ainda conforme à ideia de Razão de Estado: não havia ainda lugar para a distinção entre o “interesse do Estado”, por um lado, e o “interesse da sociedade”, por outro lado. Esta distinção só começaria a existir a partir do século III d.C.

A partir do século XIII, os teóricos da soberania real (do rei) tendem, paulatinamente e em crescendo, a opôr o interesse público, por um lado, e a lei, por outro lado — em nome de uma necessidade superior de defesa do reino, ou da salvação do príncipe, abrindo-se deste modo um espaço de excepção de onde germinará a ideia de Razão de Estado.

No século XVI, Botero (um jesuíta!) foi o primeiro teórico da Razão de Estado; com Bodin (século XVI), a Razão de Estado significa que o conceito de “soberania” passa a ser sinónimo de “Poder Absoluto”. Em Botero, o conceito de “Razão de Estado” não coincidia com o maquiavelismo: a Razão de Estado visava a produção de um mecanismo de conservação política por meios não exclusivamente militares, ao passo que Maquiavel defendia a violência militar necessária.

Botero define assim a Razão de Estado (Della Ragion di Stato, 1589) :

“O Estado é uma firme dominação sobre os povos, e a Razão de Estado é o conhecimento dos meios próprios para fundar, conservar e engrandecer um tal domínio e senhoria”.

Mas já no século XVII, o conceito de Razão de Estado mudou, por exemplo, com Naudé:

“A Razão de Estado é um excesso do direito comum em função do bem público”.

Ou seja, a partir do século XVII, a noção de “Razão de Estado” passou a permitir a excepção arbitrária e discricionária à lei, e em nome de um alegado “interesse público”. Surgiu o Absolutismo monárquico.

Poderia pensar-se que os que combatiam o absolutismo monárquico no século XVIII fossem contra o conceito de Razão de Estado conforme Naudé; mas tal não aconteceu. Rousseau transmutou o conceito de Razão de Estado, inventando o conceito de "Vontade Geral". A "Vontade Geral" nada mais é do que a Razão de Estado de Naudé levada ao absurdo, em que a discricionariedade da acção da classe política é praticamente total, em que a excepção à lei é justificada pela necessidade de um putativo “bem público”.

Os totalitarismos do século XX tiveram a sua origem próxima em Rousseau.

Quando Hannah Arendt fala em “intrusão massiva da criminalidade na vida política”, refere-se ao estado de putrefacção da sociedade gerada e gerida pela ideia de "Vontade Geral" de Rousseau. O político moderno, em geral, pode dar-se ao luxo de ser um criminoso inimputável.

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