terça-feira, 12 de abril de 2016

São muito diferentes, Lisboa e Porto (graças a Deus!)

 

O João Távora faz aqui uma ode a Lisboa.

Ora, quando em Lisboa se soube que o Porto dava esta grande festa – Lisboa teve um estremecimento de cólera. Lisboa teve a tradicional, a costumada inveja. O Porto tinha feito uma grande festa constitucional – Lisboa não tinha nenhuma!

É necessário que Vossa Majestade saiba que existe uma incurável rivalidade moral, social, elegante, comercial, alimentícia, política, entre Lisboa e Porto. Lisboa inveja ao Porto a sua riqueza, o seu comércio, as suas belas ruas novas, o conforto das suas casas, a solidez das suas fortunas, a seriedade do seu bem-estar. O Porto inveja a Lisboa a Corte, o Rei, as Câmaras, S. Carlos e o Martinho. Detestam-se. As damas de Lisboa riem-se da pouca distinção, da pequena ciência, da falta de chique e de quê das toilettes do Porto? O Porto, rubro de ódio, cobre as suas senhoras da sumptuosidade dos estofos e das faíscas dos diamantes.

Lisboa tinha touros. O Porto quis ter este bom tom de lezíria. Mas faltava-lhe o bom gado, os artistas, a faísca da troça, o estonteado especial, o sal das touradas daqui. Ah, sim? Em lugar de uma praça o Porto ergue duas. Mas consegue apenas ser duas vezes pior. Bem! O Porto sorri-se e para se desforrar, faz corridas de cavalos. Grande troça nos sportsmen a pé do Chiado: vamos batê-los, diziam, vamos batê-los desalmadamente. Chegaram lá; foram chatamente batidos.

O Porto tinha a Foz, praia de banhos, rica, de um grande pitoresco de paisagem. Lisboa, rancorosa, improvisa Cascais, sítio enfezado entre pinheiros éticos e rochedos de ópera cómica.

Os poetas do Porto fazem sorrir, no Chiado, os líricos da corte, descendentes dos vates parasitas do adro de S. Domingos: mas os da Águia de Ouro abrem sobre as mesas as odes de Vidal, e entornam-lhes em cima, como único comentário digno, molho de carne assada.

O Porto, por circunstâncias, é reformista: eis que Lisboa se veste de um grande desdém pelo sr. bispo de Viseu, António.

Em Lisboa houve ultimamente um certo movimento subterrâneo, indistinto, informe, do espírito republicano: o Porto recebe el-Rei, com um delírio que só Vossa Majestade inspirou nos dias em que passeava a pé, com a sua estreita farda de coronel de caçadores, de cravo ao peito, e batia, com as pontas dos dedos, nas faces rechonchudas das mulheres do Candal.

Lisboa come com pretensões francesas e fantasistas: logo o Porto se afoga, cada vez mais, no chorume da velha cozinha portuguesa, e abraça-se, como a um estandarte, à travessa do cozido. – Mas em quantas coisas estamos falando, que são para Vossa Majestade como as sílabas irritantes de um dialecto bárbaro? Era-se mais conciso, não é verdade, nos tempos apressados de Vossa Majestade? Hoje, a gente põe-se a caminho, mas pára a cada momento, como um anémico e um precioso, a fumar as cigarrilhas azuis da fantasia. – O facto é, Senhor, que, como o Porto tinha a sua festa constitucional, Lisboa quis ter a sua: mas qual? – Escavou-se, desentulhou-se, aprofundou-se e foi-se achar, no fundo de um passado esquecido, o esqueleto do dia 24 de Julho: o quê? és tu? existes? és! Vem! serás célebre, estrondoso, resplandecente, iluminado, cheio de honras e de colchas de damasco. – E puseram-no de pé!

(Eça de Queirós, em “As Farpas”, Volume II)

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