quinta-feira, 25 de abril de 2024

A arte é metafísica


A professora Helena Serrão transcreve um texto de Aires de Almeida, através do qual se defende a ideia (de Bell) de que uma cópia / réplica de uma obra de arte também é uma obra de arte.


Eu defendo a ideia de que uma réplica de uma obra de arte não passa disso mesmo: uma réplica. Não é propriamente uma obra de arte, mas antes tem uma estrutura diferente da obra de arte propriamente dita. Podemos dizer, no limite e com muita condescendência, que “uma réplica é arte”; mas não podemos dizer que “uma réplica é uma obra de arte”.

Invoquemos a regra de Leibniz da “identitas indescernibilium” (a identidade do indistinguível). Segundo esta regra, as unidades que não se distinguem, em nenhuma característica, devem ser consideradas completamente iguais, ou seja, idênticas. E esta identidade é não só material, mas também metafísica. Ora, esta comunhão identitária não existe entre uma obra de arte e a sua réplica.

Vamos dar o exemplo do mito do Navio de Teseu. Depois de Teseu matar o Minotauro, os cidadãos de Atenas guardaram o seu navio no porto de Atenas, onde era alvo de romarias populares, e onde foi conservado com primor. Quando uma peça do casco apodrecia, a elite ateniense substituí-a por outra. E, à medida que as peças apodrecidas do casco iam sendo substituídas, o povo não duvidou que o navio continuava a ser o Navio de Teseu.

Depois de todas as peças de madeira do navio terem sido substituídas, os filósofos de Atenas questionaram-se sobre se o navio que se encontrava no porto não seria já um navio diferente do original Navio de Teseu. Estamos aqui perante a metáfora da obra de arte e da sua réplica. O Navio de Teseu foi duplicado a nível da dimensão do espaço, mantendo-se inalterado a nível do tempo. Ora, a regra da identitas indescernibilium aplica-se tanto na dimensão do espaço como na dimensão do tempo — daí podermos dizer, com propriedade, que aquele navio no porto de Atenas já não era o Navio de Teseu.

A identidade de uma obra de arte existe (também) em uma dimensão metafísica, porque a sua génese existe em uma dimensão não-física e intemporal, manifestando-se contudo na dimensão do espaço-tempo.

Se considerarmos uma obra de Picasso, por exemplo, como uma espécie particular de sistema quântico, então poderíamos dizer que dois quadros de Picasso, que estivessem no mesmo estado quântico, seriam exactamente o mesmo quadro (identitas indescernibilium). Ora, o vector de estado quântico do Navio de Teseu e o da sua réplica não era o mesmo — e por isso é possível distingui-los.

Uma réplica de uma obra de arte não é obra de arte: é uma réplica porque tem um vector de estado quântico totalmente diferente. Uma réplica apenas reflecte o valor da obra de arte, assim como a Lua reflecte a luz do Sol.

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