quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Dostoievski, o pai do Existencialismo

 

Este texto traduz a concepção vulgarmente aceite, por assim dizer, acerca da obra de Fiodor Dostoievski. É uma concepção respeitável, mas analisemos brevemente a obra-prima de Dostoievski: “Os Irmãos Karamazov”.

Desde logo, a obra citada é baseada na experiência traumática do próprio autor que viu o seu pai assassinado pelos seus próprios servos. Antes da publicação da obra, Dostoievski tinha sido condenado à morte, acusado de conspiração, porque frequentou um círculo de pessoas que liam os escritos proibidos dos socialistas franceses (do século XIX). Em um último momento, a pena-de-morte foi comutada em quatro anos de trabalhos forçados em Omsk, seguidos de quatro anos de serviço militar (1849).

De toda esta experiência pessoal, surgiu o conceito de Dostoievski, de traços eslavófilos, de “salvação pelo sofrimento”.

O livro “Os Irmãos Karamazov” traduz não só o trauma do assassínio do seu próprio pai, como através da imagem do Grande Inquisidor (parábola inventada pelo personagem da obra, Ivan), Dostoievski pretendeu criticar a história da Igreja Católica. 1

Ou seja, não é certo que “como cristão”, Dostoievski “viu os perigos das ideias intelectuais da moda como o niilismo e o utilitarismo” — entendido aqui no sentido profiláctico ou de “aviso à navegação”. Dostoievski ilustra a ideia da profecia que, só porque foi feita, acaba por se realizar.

O conceito de “salvação pelo sofrimento” exigia, em Dostoievski, que o niilismo e o utilitarismo tivessem que existir para que a “salvação pelo sofrimento”, por sua vez, pudesse existir também. Há em Dostoievski algo de semelhante em relação aos Calvinistas do século XVI, que viam no seu próprio assassínio, pelos “hereges”, a sua “salvação”. Ora isto vai contra a tradição da Igreja Católica, que via no martírio pessoal (a “salvação pelo sofrimento”) um desígnio de Deus, mas nunca uma necessidade existencial do mártir. Sublinho aqui a palavra: existencial. Para Igreja Católica da Idade Média, um católico que desejasse a sua própria morte em nome de Deus era considerado um louco — o que já não se passava com os Calvinistas e com Dostoievski com o seu conceito de “salvação pelo sofrimento”.


A história de “Os Irmãos Karamazov” tem como protagonistas Fiodor Pavlovich Karamazov e os seus quatro filhos: Dimitri, Ivan, Aliocha, e o epiléptico Smerdiakov que é bastardo. O velho Fiodor, um indivíduo dissoluto e imoral, entra em competição com o seu filho Dimitri por causa de uma galdéria local, de seu nome Gruchenka — o que levou a grandes discussões entre pai e filho acerca das heranças que o pai pretendia sonegar ao filho. Pouco depois, Fiodor é encontrado morto, assassinado, e Dimitri é preso e acusado de assassínio.

Ivan, o intelectual, inventa a parábola do Grande Inquisidor católico: Jesus Cristo regressa à Terra e aparece na Espanha do século XVI. O Grande Inquisidor católico não tarda a mandar prender Jesus Cristo e acusa-o de ter recusado, em nome da liberdade, as dádivas do Diabo, que são o pão, os milagres e a liderança autoritarista (uma referência ao absolutismo político dos Reis Católicos de Espanha do século XVI). Segundo o Grande Inquisidor católico, essa recusa, por parte de Jesus Cristo, é a causa de todos os sofrimentos da humanidade. Por isso, o Grande Inquisidor católico declara-se fiel ao Anticristo, dizendo que, com a ajuda do Diabo, iria conseguir tornar o Homem feliz já aqui na Terra (imanência escatológica).


Dostoievski inverte aqui os termos ideológicos: quem defende a imanência escatológica (e revolucionária) é ele (na sua obra), e não (historicamente) o Grande Inquisidor católico do século XVI!

Dostoievski apenas transfere para o Grande Inquisidor católico aquilo que ele próprio anseia, deseja, e profetiza. E é desse desejo de Dostoievski que surge a sua profecia, e que traduz e interpreta uma certa tendência do seu Zeitgeist, tendência essa que ele próprio deseja e que não se pode desligar do seu conceito de “salvação pelo sofrimento”.

Dostoievski, de facto, através da parábola — ideologicamente invertida — do Grande Inquisidor católico, antecipa o aparecimento de Nietzsche que declarou a morte de Deus, por um lado, e dos sistemas totalitários do século XX, por outro lado; mas esse “mundo sem Deus” de Dostoievski é uma necessidade da “salvação pelo sofrimento” que leva à concepção do carácter absurdo da existência (Existencialismo). E é esse carácter absurdo da existência, que Dostoievski inventou, que tem que ser desconstruído ideologicamente, para além de termos a obrigação de denunciar a inversão ideológica de Dostoievski que pretendeu atingir a Igreja Católica.

Nota
1. « A revolução francesa matou mais gente em apenas um mês e em nome do ateísmo, do que a Inquisição em nome de Deus durante toda a Idade Média e em toda a Europa. » — Pierre Chaunu, historiador. 

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