sábado, 4 de janeiro de 2014

José Luís Nunes Martins, a esperança e a transmutação do mundo

 

Este texto de José Luís Nunes Martins é auto-contraditório, quando se escreve:

“O caminho da existência não é uma busca exterior, é uma aventura interior.” 1

Adiante, escreve:

“Mas, mais importante ainda que a forma como lemos a realidade será a vontade com que a transformamos, uma vez que aquilo em que se acredita determina o sentido da força com que se muda a realidade.”

Para além da contradição implícita entre as duas proposições, existe um erro de base no raciocínio de José Luís Nunes Martins: o conceito de “realidade” é indefinível. Não é possível definir “realidade”. E pergunto: ¿como é possível mudar uma coisa (ou um estado de coisas) que não tem definição?

O que se pode mudar — e é isto que o José Luís Nunes Martins defende, certamente — é uma certa noção subjectiva que temos da “realidade”; ou seja: podemos apenas mudar a nossa concepção subjectiva da “realidade”, por exemplo, através de uma metanóia religiosa, no melhor dos casos, ou até por intermédio de uma lobotomia ideológica. Mas a “realidade”, entendida em si mesma (e seja lá o que for porque ela não é definível), dela não podemos afirmar, com segurança, que muda.

A ideia segundo a qual podemos mudar a essência do mundo dos objectos, entendido em si mesmo, mediante uma alteração da forma como vemos esse mundo, é uma visão idealista. Não se trata de optimismo, mas de romantismo idealista.

Mesmo que reduzamos a “realidade” ao mundo dos objectos que nos rodeiam e perceptíveis pelos nossos sentidos, não é porque concebemos esses objectos de uma maneira ou de outra que eles passam necessariamente a ser diferentes em si. Esta ideia, segundo a qual os objectos mudam se pensarmos neles de uma forma diferente — ou eles mudam se modificarmos a linguagem que se lhes refere — é uma fé metastática que acredita que esse mundo dos objectos muda, como que por um passe de mágica, apenas porque pensamos dele de uma forma diferente de uma outra qualquer.

Nunca é demais lembrar este texto de Eric Voegelin:


« Quando o coração é sensível e o espírito contundente, basta lançar um olhar sobre o mundo para ver a miséria da criatura e pressentir as vias da redenção; se são insensíveis e embotados (o coração e o espírito), serão necessárias perturbações maciças para desencadear sensações fracas.

É assim que um príncipe mimado se apercebeu pela primeira vez de um mendigo, de um doente e de um morto ― e tornou-se assim em Buda; em contrapartida, um escritor contemporâneo vive a experiência de montanhas de cadáveres e do horroroso aniquilamento de milhares de indivíduos nas conturbações do pós-guerra na Rússia ― e conclui que o mundo não está em ordem e tira daí uma série de romances muito comedidos.

Um, vê no sofrimento a essência do ser e procura uma libertação no fundamento do mundo; o outro, vê-a como uma situação de infelicidade à qual se pode, e deve, remediar activamente. Tal alma sentir-se-á mais fortemente interpelada pela imperfeição do mundo, enquanto a outra sê-lo-á pelo esplendor da criação.

Um, só vive o além como verdadeiro se ele se apresentar com brilho e com grande barulho, com a violência e o pavor de um poder superior sob a forma de uma pessoa soberana e de uma organização; para o outro, o rosto e os gestos de cada homem são transparentes e deixam transparecer nele a solidão de Deus. »


José Luís Nunes Martins confunde “pessimismo”, por um lado, com “realismo”, por outro lado — quando escreve:

“Os pessimistas sentem-se inclinados a reter da realidade apenas os pontos negativos que lhes comprovam os desesperos; já o optimista tende a ver em cada cenário o sinal que lhe prova e anima a esperança”.

Em contraponto, Nicolás Gómez Dávila escreve o seguinte:

“O homem mais desesperado é apenas o que esconde melhor a sua esperança”.

Não é certo que o optimista seja o detentor exclusivo da esperança propriamente dita. Não há maior esperança do que aquela que existe em um homem desesperado. Mas um homem desesperado não é necessariamente um pessimista: na maioria dos casos, é um realista, alguém que encara os factos e o mundo tal qual eles vão ao encontro da sua existência. Não se trata, aqui, de saber se o copo está meio cheio (optimista) ou meio vazio (pessimista): trata-se de constatar que o copo tem a água pela metade; ou então que não tem água nenhuma, se for esse o caso.


Nota
1. Deus não reconhece senão indivíduos. Qualquer mudança só pode ser interior ao indivíduo, mas essa mudança interior nunca é garantia de que podemos mudar o mundo, exactamente porque a mudança, a existir, é sempre inerente à subjectividade do indivíduo. Paradoxalmente, a ideia de que podemos mudar alguma coisa exterior a nós próprios só pode ser validada se negarmos essa mudança entendida em si mesma.

Na medida em que não há duas pessoas iguais, não há duas subjectividades iguais. Por isso, mesmo essa mudança interior, a existir, pode ser uma mudança ilusória; pode ser apenas uma crença que se mudou, mantendo-se a mesma qualidade do nosso ser.

Ficheiro PDF do artigo de JLNM

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