quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

A crise endémica que parece sempre o “fim da História”

 

Vou fazer de conta de que este verbete não foi escrito neste blogue, ou seja, vamos partir do princípio de que a fonte do texto é ideologicamente asséptica.

“Na tradição médica, crisis significa o momento em que o médico tem de julgar e de decidir se o paciente irá morrer ou sobreviver. O dia ou os dias em que estas decisões são tomadas são chamados crisimoi, os dias decisivos. Na teologia, a crisis é o último julgamento proclamado por Cristo no fim dos tempos. Como podem ver, o que é essencial em ambas as tradições é a ligação a um momento especifico no tempo.

Na utilização presente do termo, é abolida esta ligação. A crise e o julgamento são separados do seu correspondente temporal e coincidem agora com o decurso cronológico do tempo, de modo que, não apenas na economia e na política, mas em todos os aspectos da vida social, a crise coincide com a normalidade e torna-se, deste modo, apenas uma ferramenta de governo.

Consequentemente, a capacidade de decidir desaparece de vez e processo contínuo de tomada de decisões não decide absolutamente nada. Para o formular em termos paradoxais, podemos dizer que, encarando um estado de excepção contínuo, o governo tende a tomar a forma de um perpétuo golpe de estado. Este paradoxo seria uma descrição precisa do que sucede tanto aqui na Grécia como em Itália, onde governar significa fazer uma série continua de pequenos golpes de estado. O presente governo italiano não é legitimo.”

1/ dizer que o que se passa hoje no mundo “é novo”, é uma verdade de La Palisse. Mas, como dizia Fernando Pessoa, o que se passa hoje no mundo é a “velhice do eterno novo”.

Vamos analisar a seguinte proposição que é central ao raciocínio: “a crise coincide com a normalidade e torna-se, deste modo, apenas uma ferramenta de governo”.

Aqui, o escriba não se deu conta da noção epistemológica de crise: segundo Thomas Kuhn, a crise dá-se quando são detectadas anomalias no paradigma (seja este científico, seja, neste caso, ideológico-político), pondo em causa a sua fidelidade/verdade, entrando em ruptura. A crise do paradigma torna possível o aparecimento de soluções não previstas pelo paradigma e, também, de disputas acerca das regras e princípios que constituem o paradigma. A crise torna-se “séria” quando o novo paradigma se começa a formar.

Portanto, não há dúvida de que existe uma crise de paradigma ideológico-político na Europa (e não só), que se deve a anomalias no actual paradigma que entrou em ruptura. O problema que se coloca aqui é o de saber se o novo paradigma, que se começa a formar, é mais ou menos consentâneo com uma ética racional, e/ou se o novo paradigma que se desenha é um avanço ou um retrocesso civilizacional.

Em todos os processos políticos de ruptura de paradigma, a crise do paradigma é sempre entendida, a cada época, como “uma ferramenta de governo”. E é nisto, também, que consiste a “velhice do eterno novo”. Por exemplo, podemos dizer que os bolcheviques perpetuaram a crise que resultou do golpe-de-estado de 1917 e que se transformou em normalidade, e que Estaline não fez outra coisa senão transformar uma perpétua crise em uma ferramenta de governo.

2/ Ortega y Gasset identifica as “épocas de crise” com a inautenticidade do Homem. Em tempos de crise, o Homem — entendido individual e subjectivamente — deixa de ser autêntico, isto é, deixa de ser aquilo que ele é na sua essência e em coerência.

A autenticidade do Homem (e continuo a descrever a tese de Ortega y Gasset) acontece em “épocas orgânicas” da História, que são os tempos em que o futuro parece tranquilo e o presente seguro e assegurador. Nas épocas orgânicas, o passado não merece contestação nem é desconstruído, porque o Homem reconcilia-se consigo próprio; até o ateu vive tranquilo com o seu ateísmo, desde que consiga ter a certeza íntima do seu ateísmo.

Pelo contrário, nas “épocas de crise” o Homem vive angustiado com o futuro, não consegue a sua coerência interna e o sentido de vida, pessoais e subjectivos em relação ao seu presente, e tende a desconstruir o passado. “A mudança do mundo consistiu no facto de que o mundo em que vivíamos desmoronou e, de momento, em nada mais.” Na ausência dos valores que caracterizaram a época orgânica que acaba de desmoronar, a época de crise transporta consigo a possibilidade do melhor, mas também do pior. O futuro é opaco. As dicotomias são exacerbadas. Os radicalismos imperam.

“A Rebelião das Massas”, que caracteriza a época de crise ocidental que se iniciou no Iluminismo — e que, na minha opinião, atingiu o ponto máximo nos últimos vinte anos — é considerada por Ortega y Gasset como sendo a pior de todas, na medida em que nunca a incerteza sobre o futuro foi tão grande como é agora. A doce tranquilidade do presente, a segurança do futuro, e o respeito pelo passado que caracterizaram a época orgânica anterior ao Iluminismo — “a plenitude dos tempos”, como lhe chamou — já não existem. Mas, para Ortega, a uma época crítica sucede uma época orgânica, e vice-versa.

3/ a actual crise na Europa, sendo uma ruptura de paradigma ideológico-político, não apresenta — pelo menos por agora — soluções que possam ser consideradas positivas, porque a realidade social é reduzida à economia, e, em função desta redução da realidade à economia, a política deixou de ser episteme e transformou-se em doxa 1. Esta redução da realidade à economia não é só característica da direita neoliberal: também é partilhada pela esquerda herdeira do defunto marxismo-leninismo que já deu origem a um neomarxismo.

Para a política actual (entendida no seu conjunto como doxa, tanto de direita como de esquerda, na Europa) a “inautenticidade do Homem”, em vez de ser um defeito, passou a ser uma virtude: não há qualquer garantia de segurança em relação ao futuro como existiu em épocas orgânicas da História, a tranquilidade do presente só é possível através da auto-repressão das convicções individuais que não se identifiquem com uma espécie de “Iluminismo negativo” que se afirma na cultura (na direita de Ângela Merkel e na esquerda de François Hollande), e da total privatização das subjectividades (por exemplo, a actual tendência para impôr a restrição da expressão religiosa à intimidade do lar, tendendo a proibir a sua expressão em locais públicos).

A actual doxa política impõe que o passado tenha que ser erradicado da História (esta erradicação do passado é defendida tanto pelo neoliberalismo como pelo neomarxismo), reduzindo a História à própria época crítica presentista e sempre actual — e neste sentido, a própria época crítica actual parece ilusoriamente ser escatológica e final. E é nesta escatologia aparente da História que reside a ilusão da “crise como instrumento de governo”.

Nota
1. A doxa não procura as causas das coisas ou dos acontecimentos; a opinião, em política, expressa-se como se não existisse nem passado e nem uma sequência causal dos fenómenos sociais e culturais. Em contraponto, o episteme , em política, é a procura de um nexo causal dos fenómenos sociais e culturais.

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