« O positivismo é o romantismo das ciências. A tendência própria do romantismo para identificar o finito com o infinito1 para considerar o finito como a revelação, e a realização progressiva do infinito é transferida e realizada pelo positivismo no seio da ciência.
Com o positivismo, a ciência exalta-se, apresenta-se como a única manifestação legítima do infinito e, assim, assume um carácter religioso, prendendo suplantar as religiões tradicionais.
O positivismo é parte integrante do movimento romântico do século XIX. Que o positivismo seja incapaz de fundar os valores morais e religiosos e, especialmente, o próprio princípio de que dependem, a liberdade humana, é um ponto de vista polémico, que a reacção anti-positivista, espiritualista e idealista da segunda metade do século XIX fez prevalecer na historiografia filosófica. Assim se pode considerar justificado, no todo ou em parte, este ponto de vista.
Mas é fora de dúvida que, nos seus fundadores, e nos seus epígonos, o positivismo se apresenta como a exaltação romântica da ciência, como infinitização, como pretensão a valer de única religião autêntica, e por conseguinte, como único fundamento possível da vida humana individual e social.
O positivismo acompanha e promove o nascimento e a afirmação da organização técnico-industrial da sociedade, fundada e condicionada pela ciência. Exprime as esperanças, os ideais e a exaltação optimista que provocaram e acompanharam esta fase da sociedade moderna. O Homem, nesta época, julgou ter encontrado na ciência a garantia infalível do seu próprio destino. Por isso rejeitou, considerando-a inútil e supersticiosa, toda a garantia sobrenatural e pôs o infinito na ciência, encerrando nas formas desta, a moral, a religião, a política – a totalidade da sua existência.
(…)
O materialismo, que alguns epígonos deduzem do positivismo evolucionista, é, ele próprio, uma metafísica romântica: a deificação da matéria e o culto religioso da ciência. »
→ “História da Filosofia”, de Nicola Abbagnano, Tomo X, §629, Editorial Presença, Lisboa, 1970
Nota
1. A imanência
sábado, 31 de outubro de 2015
O positivismo é o romantismo das ciências (para memória futura)
quinta-feira, 15 de outubro de 2015
O Quim e o Nozick
No debate ético americano, a oposição contemporânea à Esquerda (John Rawls, Dworkin) foi feita pelos anarco-capitalistas hayekianos radicais, liberais e utilitaristas, representados por Robert Nozick e por Buchanan (e até David Gauthier), por um lado, e por outro lado pelos chamados “comunitaristas” como Michael Sandel, Alasdair MacIntyre, Charles Taylor, e até Michael Walzer.
Rawls fez uma crítica ao utilitarismo; Nozick defendeu, contra Rawls, um utilitarismo radical e exacerbado próximo do Marginalismo; e os comunitaristas, dentro de uma linha não-utilitarista, fizeram também uma crítica fundamental a Rawls.
A principal diferença entre os anarco-capitalistas hayekianos, por um lado, e os comunitaristas por outro lado, é a de que os primeiros defendem uma concepção ética e de justiça utilitarista, ao passo que os segundos fazem uma crítica ao utilitarismo.
Por exemplo, os radicais utilitaristas (como Nozick) reduzem as regras da justiça distributiva à noção de “processo”, em particular à noção de “processo contratual”: (alegadamente) aquilo que é justo é aquilo que resulta de um “resultado correcto” da aplicação de um processo sobre o “bem”: o que interessa não é o bem ou a felicidade entendidos em si mesmos — porque, por exemplo, um sado-masoquista tem uma ideia de bem e de felicidade diferente —, mas o que interessa é o “processo contratual” jurídico (os meios utilizados, através do “processo”, justificam qualquer fim dentro do princípio de não-agressão, o que significa a afirmação quase absoluta de uma liberdade negativa) que permita satisfazer qualquer idiossincrasia privada, por mais aberrante que seja. Em suma, segundo Nozick, a moral é o que cada um quiser que seja.
Em contraponto, os comunitaristas introduzem na reflexão moral e política o que os radicais utilitaristas (Nozick) quiseram eliminar. Por exemplo, a preeminência do bem sobre o justo: os princípios que organizam uma sociedade não podem ser neutros em relação às concepções substantivas do bem que estão em confronto entre os cidadãos.
Ou seja, segundo os comunitaristas, há uma concepção substantiva da vida social que visa a promoção do bem-comum — e é isto que Nozick nega. Para Nozick, o que interessa é o processo jurídico (seja qual for) que permita a afirmação de um relativismo moral na sociedade, e não qualquer ideia de bem-comum. A noção de bem-comum é estranha a Nozick.
Por outro lado, os comunitaristas insistem no facto de que as concepções individuais de “vida de sucesso” (a “vida boa” de Aristóteles) não são independentes do enraizamento dos indivíduos em um contexto social que tem uma história e que condiciona as soluções que podemos dar aos problemas morais em geral, e, em particular, aos problemas da justiça distributiva.
O argumento de Nozick de “neutralidade moral” (do Estado) é uma falácia: por exemplo, saber se o facto de Estado se recusar intervir no tema do aborto depende da verdade ou da falsidade da doutrina moral que concebe o aborto como um assassínio. O argumento dos comunitaristas é o seguinte: apenas se a tese do aborto como assassínio se revelar falsa, se terá, então, o direito de exigir ao Estado que permaneça neutro quanto ao assunto e, por isso, deixe exercer o “direito ao aborto” (Sandel). Ademais, o Estado não pode permanecer neutro em relação à verdade ou falsidade verificadas pela ciência.
Vejamos agora este texto do Quim sobre o Nozick:
“Um argumento filosófico é uma tentativa de levar alguém a acreditar em algo, quer esse alguém o aceite ou não. Um argumento filosófico com sucesso, um argumento poderoso, obriga a uma crença.
Apesar da filosofia ser, portanto, uma actividade coerciva, a ameaça dos filósofos é contudo fraquinha. Se o outro estiver disposto a ficar com a etiqueta de 'irracional' ou de 'ter os piores argumentos', pode afastar-se alegremente com as sua crenças prévias”.
→ Nozick
Ou seja, por exemplo, se eu demonstrasse que o Quim tem uma insuficiência cognitiva, ele poderia afastar-se alegremente desvalorando qualquer argumento que demonstre a sua (dele) insuficiência — o que seria óbvio: nenhum anormal dá importância à sua anormalidade.
O mesmo critério de Nozick aplica-se à ciência:
“Um argumento científico é uma tentativa de levar alguém a acreditar em algo, quer esse alguém o aceite ou não. Um argumento científico com sucesso, um argumento poderoso, obriga a uma crença.
Apesar de a ciência ser, portanto, uma actividade coerciva, a ameaça dos cientistas é contudo fraquinha. Se o outro estiver disposto a ficar com a etiqueta de 'irracional' ou de 'ter os piores argumentos', pode afastar-se alegremente com as sua crenças prévias”.
O problema é o de que um argumento científico só se combate com outro argumento científico, ou então com um argumento filosófico (por exemplo, utilizando a lógica). Por exemplo, havia muita gente que não acreditava — portanto, não aceitava — que a NASA levou o homem à Lua em 1969. Portanto, segundo Nozick, a crença segundo a qual “o homem foi à Lua” é tão relevante como a crença da “impossibilidade de o homem ter ido à Lua”: o céptico em relação a um facto científico “pode afastar-se alegremente com as sua crenças prévias”.
O problema português é o de que tanto a Esquerda (excepto o Partido Comunista) como a Direita seguem os princípios utilitaristas de Nozick. E tanto a primeira como a segunda vivem em contradição em relação às matrizes históricas das suas respectivas mundividências. A política em Portugal é absolutamente irracional: face a uma qualquer verificação ou demonstração, qualquer político “pode afastar-se alegremente com as sua crenças prévias” e subjectivas.
domingo, 28 de setembro de 2014
A Inês Teotónio Pereira , Rousseau e a família
“Quando Rousseau pensou no contrato social, não imaginou que por aqui se fosse tão longe. Não imaginou que as famílias não reclamariam poder, deveres e direitos, e que não se organizassem como a célula-base de qualquer sociedade”. → Inês Teotónio Pereira
Acredite o leitor se quiser: Rousseau era contra as associações e contra a família. Talvez a melhor análise do Contrato Social de Rousseau foi a de Bertrand Russell:
“A teoria política de Rousseau é apresentada no Contrato Social, de 1762. É de carácter muito diverso do da maior parte da sua obra; tem pouca sentimentalidade e muito raciocínio. As suas doutrinas, embora preguem democracia, tendem a justificar um Estado totalitário”.
→ Bertrand Russell, “História da Filosofia Moderna”, página 635, 9ª Edição, tradução do professor doutor Vieira de Almeida, 1961, Lisboa.
E segue-se nas páginas 636 e 637:
“O contrato consiste na 'alienação total dos direitos de cada associado em favor da comunidade; em primeiro lugar, como cada um se entrega absolutamente, as condições são iguais e daí ninguém ter interesse em torná-las opressivas a outros'. A alienação é sem reserva. 'Se houvesse indivíduos com certos direitos, não havendo superior comum para decidir entre eles e o público, cada um deles, juiz de si mesmo, pretenderia sê-lo dos outros. Continuar-se-ia o estado de natureza, e a associação necessariamente se tornaria inoperante ou tirânica'.
Isto implica completa ab-rogação da liberdade e completa rejeição dos direitos do homem. É verdade que em capítulo ulterior se atenua a doutrina, dizendo que embora o contrato social dê ao corpo político poder absoluto sobre os seus membros, os seres humanos têm direitos naturais, como homens”.
Bem sei que a ideia que a Inês Teotónio Pereira tem de Rousseau é vulgar e comum; mas nem tudo o que é vulgar e comum corresponde à verdade. Ela deveria ter escrito o seguinte:
“Quando Rousseau pensou no contrato social, imaginou que por aqui se fosse tão longe. Imaginou que as famílias não reclamariam poder, deveres e direitos, e que não se organizassem como a célula-base de qualquer sociedade”.
domingo, 11 de maio de 2014
Acerca do sincretismo da “Direita dos valores e da Esquerda do trabalho”
Os valores têm que ser fundados (e fundamentados) em alguma coisa de essencial (essência), e não apenas em factos históricos. Os factos históricos apenas corroboram simbolicamente a essência que os transcende e que, pelo menos até certo ponto, os condiciona.
Quando nós fundamos os nossos valores apenas em factos históricos, a nossa mundividência é imanente e, por isso, alvo fácil da corrupção por via da sucessão temporal do “espírito tempo” ou da moda: os nossos valores tornam-se facilmente susceptíveis de desqualificação e desvalorização através das mudanças culturais que são normais e naturais.
Se as mudanças culturais são normais e naturais, já os valores axiomáticos são intemporais.
Podem mudar os tempos, e com eles mudam-se vontades (como dizia o poeta), mas não pode mudar a essência dos valores. Os valores devem ser como os axiomas da lógica: não podem ser mudados (senão por gente psicótica: só gente desfasada da realidade “muda” os axiomas da lógica). No entanto, são esses mesmos axiomas da lógica, imutáveis, que estão por exemplo na base do desenvolvimento da matemática que nos permitiu viajar no espaço cósmico. Assim como os axiomas da lógica são os primeiros princípios da matemática e da própria ciência, assim os valores intemporais são os primeiros princípios da ética que necessariamente determina a política e todas as actividades humanas.
A ética e os valores estão a montante da política e da economia (estão “antes” da política e da economia), e não o contrário disto. Os valores da ética não podem ser uma consequência da práxis política nem dos interesses da economia, sob pena de não termos nenhum ponto de referência ontológico que nos permita escorar racionalmente a acção humana.
quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014
A crise endémica que parece sempre o “fim da História”
Vou fazer de conta de que este verbete não foi escrito neste blogue, ou seja, vamos partir do princípio de que a fonte do texto é ideologicamente asséptica.
“Na tradição médica, crisis significa o momento em que o médico tem de julgar e de decidir se o paciente irá morrer ou sobreviver. O dia ou os dias em que estas decisões são tomadas são chamados crisimoi, os dias decisivos. Na teologia, a crisis é o último julgamento proclamado por Cristo no fim dos tempos. Como podem ver, o que é essencial em ambas as tradições é a ligação a um momento especifico no tempo.
Na utilização presente do termo, é abolida esta ligação. A crise e o julgamento são separados do seu correspondente temporal e coincidem agora com o decurso cronológico do tempo, de modo que, não apenas na economia e na política, mas em todos os aspectos da vida social, a crise coincide com a normalidade e torna-se, deste modo, apenas uma ferramenta de governo.
Consequentemente, a capacidade de decidir desaparece de vez e processo contínuo de tomada de decisões não decide absolutamente nada. Para o formular em termos paradoxais, podemos dizer que, encarando um estado de excepção contínuo, o governo tende a tomar a forma de um perpétuo golpe de estado. Este paradoxo seria uma descrição precisa do que sucede tanto aqui na Grécia como em Itália, onde governar significa fazer uma série continua de pequenos golpes de estado. O presente governo italiano não é legitimo.”
1/ dizer que o que se passa hoje no mundo “é novo”, é uma verdade de La Palisse. Mas, como dizia Fernando Pessoa, o que se passa hoje no mundo é a “velhice do eterno novo”.
Vamos analisar a seguinte proposição que é central ao raciocínio: “a crise coincide com a normalidade e torna-se, deste modo, apenas uma ferramenta de governo”.
Aqui, o escriba não se deu conta da noção epistemológica de crise: segundo Thomas Kuhn, a crise dá-se quando são detectadas anomalias no paradigma (seja este científico, seja, neste caso, ideológico-político), pondo em causa a sua fidelidade/verdade, entrando em ruptura. A crise do paradigma torna possível o aparecimento de soluções não previstas pelo paradigma e, também, de disputas acerca das regras e princípios que constituem o paradigma. A crise torna-se “séria” quando o novo paradigma se começa a formar.
Portanto, não há dúvida de que existe uma crise de paradigma ideológico-político na Europa (e não só), que se deve a anomalias no actual paradigma que entrou em ruptura. O problema que se coloca aqui é o de saber se o novo paradigma, que se começa a formar, é mais ou menos consentâneo com uma ética racional, e/ou se o novo paradigma que se desenha é um avanço ou um retrocesso civilizacional.
Em todos os processos políticos de ruptura de paradigma, a crise do paradigma é sempre entendida, a cada época, como “uma ferramenta de governo”. E é nisto, também, que consiste a “velhice do eterno novo”. Por exemplo, podemos dizer que os bolcheviques perpetuaram a crise que resultou do golpe-de-estado de 1917 e que se transformou em normalidade, e que Estaline não fez outra coisa senão transformar uma perpétua crise em uma ferramenta de governo.
2/ Ortega y Gasset identifica as “épocas de crise” com a inautenticidade do Homem. Em tempos de crise, o Homem — entendido individual e subjectivamente — deixa de ser autêntico, isto é, deixa de ser aquilo que ele é na sua essência e em coerência.
A autenticidade do Homem (e continuo a descrever a tese de Ortega y Gasset) acontece em “épocas orgânicas” da História, que são os tempos em que o futuro parece tranquilo e o presente seguro e assegurador. Nas épocas orgânicas, o passado não merece contestação nem é desconstruído, porque o Homem reconcilia-se consigo próprio; até o ateu vive tranquilo com o seu ateísmo, desde que consiga ter a certeza íntima do seu ateísmo.
Pelo contrário, nas “épocas de crise” o Homem vive angustiado com o futuro, não consegue a sua coerência interna e o sentido de vida, pessoais e subjectivos em relação ao seu presente, e tende a desconstruir o passado. “A mudança do mundo consistiu no facto de que o mundo em que vivíamos desmoronou e, de momento, em nada mais.” Na ausência dos valores que caracterizaram a época orgânica que acaba de desmoronar, a época de crise transporta consigo a possibilidade do melhor, mas também do pior. O futuro é opaco. As dicotomias são exacerbadas. Os radicalismos imperam.
“A Rebelião das Massas”, que caracteriza a época de crise ocidental que se iniciou no Iluminismo — e que, na minha opinião, atingiu o ponto máximo nos últimos vinte anos — é considerada por Ortega y Gasset como sendo a pior de todas, na medida em que nunca a incerteza sobre o futuro foi tão grande como é agora. A doce tranquilidade do presente, a segurança do futuro, e o respeito pelo passado que caracterizaram a época orgânica anterior ao Iluminismo — “a plenitude dos tempos”, como lhe chamou — já não existem. Mas, para Ortega, a uma época crítica sucede uma época orgânica, e vice-versa.
3/ a actual crise na Europa, sendo uma ruptura de paradigma ideológico-político, não apresenta — pelo menos por agora — soluções que possam ser consideradas positivas, porque a realidade social é reduzida à economia, e, em função desta redução da realidade à economia, a política deixou de ser episteme e transformou-se em doxa 1. Esta redução da realidade à economia não é só característica da direita neoliberal: também é partilhada pela esquerda herdeira do defunto marxismo-leninismo que já deu origem a um neomarxismo.
Para a política actual (entendida no seu conjunto como doxa, tanto de direita como de esquerda, na Europa) a “inautenticidade do Homem”, em vez de ser um defeito, passou a ser uma virtude: não há qualquer garantia de segurança em relação ao futuro como existiu em épocas orgânicas da História, a tranquilidade do presente só é possível através da auto-repressão das convicções individuais que não se identifiquem com uma espécie de “Iluminismo negativo” que se afirma na cultura (na direita de Ângela Merkel e na esquerda de François Hollande), e da total privatização das subjectividades (por exemplo, a actual tendência para impôr a restrição da expressão religiosa à intimidade do lar, tendendo a proibir a sua expressão em locais públicos).
A actual doxa política impõe que o passado tenha que ser erradicado da História (esta erradicação do passado é defendida tanto pelo neoliberalismo como pelo neomarxismo), reduzindo a História à própria época crítica presentista e sempre actual — e neste sentido, a própria época crítica actual parece ilusoriamente ser escatológica e final. E é nesta escatologia aparente da História que reside a ilusão da “crise como instrumento de governo”.
Nota
1. A doxa não procura as causas das coisas ou dos acontecimentos; a opinião, em política, expressa-se como se não existisse nem passado e nem uma sequência causal dos fenómenos sociais e culturais. Em contraponto, o episteme , em política, é a procura de um nexo causal dos fenómenos sociais e culturais.