domingo, 11 de maio de 2014

Acerca do sincretismo da “Direita dos valores e da Esquerda do trabalho”

 

Os valores têm que ser fundados (e fundamentados) em alguma coisa de essencial (essência), e não apenas em factos históricos. Os factos históricos apenas corroboram simbolicamente a essência que os transcende e que, pelo menos até certo ponto, os condiciona.

Quando nós fundamos os nossos valores apenas em factos históricos, a nossa mundividência é imanente e, por isso, alvo fácil da corrupção por via da sucessão temporal do “espírito tempo” ou da moda: os nossos valores tornam-se facilmente susceptíveis de desqualificação e desvalorização através das mudanças culturais que são normais e naturais.

Se as mudanças culturais são normais e naturais, já os valores axiomáticos são intemporais.

Podem mudar os tempos, e com eles mudam-se vontades (como dizia o poeta), mas não pode mudar a essência dos valores. Os valores devem ser como os axiomas da lógica: não podem ser mudados (senão por gente psicótica: só gente desfasada da realidade “muda” os axiomas da lógica). No entanto, são esses mesmos axiomas da lógica, imutáveis, que estão por exemplo na base do desenvolvimento da matemática que nos permitiu viajar no espaço cósmico. Assim como os axiomas da lógica são os primeiros princípios da matemática e da própria ciência, assim os valores intemporais são os primeiros princípios da ética que necessariamente determina a política e todas as actividades humanas.

A ética e os valores estão a montante da política e da economia (estão “antes” da política e da economia), e não o contrário disto. Os valores da ética não podem ser uma consequência da práxis política nem dos interesses da economia, sob pena de não termos nenhum ponto de referência ontológico que nos permita escorar racionalmente a acção humana.

O problema da modernidade (Iluminismo) é que inverteu a hierarquia dos princípios da realidade: a política passou a ditar os valores 1 (da ética), em vez de serem os valores a determinar a política. Como dizia Bento XVI referindo-se ao marxismo, “para o marxismo, a política é uma práxis que cria verdade” (ou seja, para o marxismo, a acção política cria os valores 2 ), “em vez de pressupor essa verdade” (quando deveriam ser os valores pressupostos a definir a política).

Porém, esta frase de Bento XVI é aplicável (em minha opinião, como é evidente) a toda a modernidade, e não só ao marxismo: na modernidade, é a política que define a ética, quando deveria ser exactamente o contrário disto. E mais: com o actual globalismo, chegamos ao ponto absurdo em que é a economia que define a política que, por sua vez, define a ética.

Hoje temos a inversão total:

economia → política → ética → metafísica

quando deveria racionalmente ser:

metafísica → ética → política → economia

Quando a política define a ética (ou seja, quando a política define os valores, ou, o que é o mesmo, quando “a práxis define a verdade”), os valores da ética passam a fazer parte de uma moda que muda em função da mudança dos tempos, e as sociedades humanas transformam-se em uma espécie de “navios fantasmas” que “erram no mal alto” ao sabor dos elementos naturais (os déspotas da modernidade), sociedades destituídas de sentido para além de um horizonte imediato (por exemplo, o Portugal de hoje na União Europeia “navega à vista”, sem projecto a longo prazo), e porque não podem navegar senão à vista da costa. A estas sociedades falta-lhes a “bússola” dos valores intemporais que lhes permita navegar no mar alto.

Se os valores (da ética) são intemporais, não podemos dizer que eles só existem ou “são exclusivos de uma determinada época”. O que podemos dizer, por verificação de facto, é que os valores intemporais podem ter sido aplicados com mais frequência em uma determinada época do que noutra; mas não há épocas perfeitas nem “douradas”.


Depois deste intróito, vamos a este texto do blogue Pena e Espada.

1/ Os valores intemporais da ética impõem um conceito de justiça que tem existência em si mesma. A justiça existe por si mesma, ou seja, a justiça não é dedutível de factos. Neste sentido, a “mobilidade social” não pode ser considerada, em si mesma, como um “mal” — conforme o texto diz claramente:

“O outro sobre o amoralismo integral e moderno da lei do lucro, com a porta aberta a todos os arrivismos, a todas as decadências e todas as mobilidades sociais…”

O que pode estar errada é a razão pela qual um determinado tipo de “mobilidade social” existe, mas não a mobilidade social entendida em si mesma. O reconhecimento privado e público do valor do “outro” (“outro” no sentido do ser humano enquanto elemento da sociedade) não deve ser eticamente considerado um “mal”; o que pode estar errada é razão que determina uma mobilidade social que privilegia a nulidade, o niilismo e o interesse próprio em detrimento do bem-comum. Ora, é isto que essa Direita dita “tradicionalista” (portuguesa e/ou europeia) não consegue ver.

Dou um exemplo:

Quando o Infante D. Henrique preparou as Descobertas Portuguesas, reuniu-se em Sagres, nomeadamente, com muitos judeus. Como se sabe, os judeus portugueses eram considerados de condição social inferior (porque não eram cristãos). No entanto, o Infante concedeu-lhes a oportunidade da mobilidade social, e muitos desses judeus passaram a frequentar a Corte de D. João I e de D. Duarte com honra, pompa e circunstância, e alguns adquiram até títulos nobiliárquicos. 3 Vemos, por este exemplo, como a mobilidade social não é necessariamente inimiga do tradicionalismo — ao contrário do que a actual Direita “tradicionalista” defende.

2/ O sincretismo do conceito de “Direita dos valores e de Esquerda do trabalho”, conforme o texto referido, resulta de uma concepção dialéctica hegeliana da realidade — ou seja, o sincretismo, na ética (e, por isso, na política), é sempre o resultado de uma visão moderna da realidade, em que o próprio sincretismo corresponde ao movimento de síntese do movimento triádico hegeliano (tese → antítese → síntese).

Ou seja, o conceito de “Direita dos valores e de Esquerda do trabalho” resulta de uma visão moderna da realidade — e não é possível colocar em causa (ou criticar) a visão moderna da realidade através de uma visão moderna da realidade, porque entraríamos em círculo vicioso. De facto, o que se passa na política moderna é que se evolui em círculo vicioso, exactamente porque os primeiros princípios foram colocados em causa pela modernidade. Sem ter em devida conta os primeiros princípios (os tais “axiomas” ou valores intemporais), a modernidade “anda às voltas” em um labirinto ideológico que lhe retira o sentido da existência.

Sobre a dicotomia Esquerda/Direita, temos o seguinte:

Para um indivíduo de Direita, a tradição é a condição do progresso.

O indivíduo de Direita é um herdeiro de uma civilização, e ao mesmo tempo é o transmissor dessa civilização para as gerações futuras. O ser humano é visto como um “anjo caído”, um “animal ferido” na sua condição ontológica, e o objectivo da política é o de suprir as lacunas dessa fraqueza humana originária mediante instituições fortes e que se fundamentem na herança histórica e na experiência do passado.

Para o indivíduo de Esquerda, a política significa romper com a tradição em nome do progresso.

Para a Esquerda, o ser humano é um ser naturalmente bom (o “bom selvagem”, de Rousseau) e sem “pecado original”, que tende, pelo sentido da História, a um progresso em direcção à perfeição (Historicismo), sendo que considera que os “arcaísmos do passado” são obstáculos a ser removidos em função desse progresso rumo à perfeição do ser humano — e a política é vista como uma forma de libertação desse “passado arcaico”. Para o indivíduo de Esquerda, o progresso é uma espécie de lei da Natureza.

É esta, realmente, a diferença essencial entre Esquerda e Direita.

Perante esta realidade, não é possível um sincretismo. Não é possível a quadratura do círculo. Esta diferença real entre a Esquerda e a Direita é uma diferença radical de cosmovisão, é uma diferença inconciliável. De certo modo, podemos dizer que são os “contrários de Heraclito”, com a diferença de que Heraclito estava errado quando pensou que seria possível juntá-los em um sincretismo lógico que inspirou Hegel. Só é possível anular os contrários de Heraclito em uma realidade que esteja para além da dimensão sujeito/objecto.

Por outro lado, e como é bom de ver, há indivíduos que se dizem “de direita” que são, de facto, de Esquerda, na medida em que consideram que o progresso é uma espécie de lei da Natureza que evolui de forma dialéctica por via de um sincretismo hegeliano de superação sintética dos contrários.

Não é possível sair deste labirinto existencial senão através do retorno aos primeiros princípios (o retorno aos axiomas metafísicos que condicionam da ética) como fundamento da acção humana. Mas não são só os neoliberais que recusam esse retorno: a Direita que se diz pugnar pelos “valores e pelo trabalho” vê os factos históricos de uma forma imanente, em que o simbolismo desses factos históricos é hoje destituído de transcendência e são considerados apenas instrumentos da primazia da política como criadora da verdade.

(Ficheiro PDF do texto originário)

Notas
1. não me refiro aqui a Kant, que foi uma excepção na ética do Iluminismo
2. o que é um absurdo: seria como se alguém dissesse que “a visão é a condição do olho”, em vez de dizer que “o olho é a condição da visão”
3. Quando D. Manuel I expulsou os judeus portugueses, começou a decadência de Portugal.

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