segunda-feira, 19 de maio de 2014

Um dos argumentos a favor das alterações acorditas da escrita

 

Alguém escreveu o seguinte no FaceBook:

"A ortografia é uma mera representação simbólica da língua. Completamente exterior a ela. OK? Eu posso viver com a língua sem nunca a saber representar simbolicamente e ela não morre nem fica pobre por causa disso."



1/ Se não houver escrita — ou aquilo a que se chamou ali “representação simbólica” —, a língua fica pobre com certeza, porque uma língua sem escrita reduz-se aos conceitos mais básicos. É a escrita que permite o desenvolvimento do pensamento abstracto. Uma língua sem escrita reduz os conceitos ao concreto (incluindo os mitos).

Portanto, temos aqui o primeiro erro da proposição.

2/ A escrita pode ser “fonética” — como é a nossa escrita — ou “simbólica”. Por exemplo, o chinês tem uma escrita simbólica; mas acontece que eu não sou chinês. Não sei se quem escreveu aquilo é meio achinesado, mas eu não sou.

No chinês, qualquer caracter escrito é um símbolo, porque o caracter chinês resume um determinado conceito. Por isso é que a escrita chinesa é "simbólica" (ou “ideográfica”, o que vai dar no mesmo).

Na escrita simbólica, existe um símbolo intermediário  isolado (leia-se, um caracter escrito) entre o conceito, em si mesmo, por um lado, e a escrita que o representa, por outro lado. Na escrita dita “fonética”, que é a nossa, esse símbolo intermediário isolado não existe: é a palavra inteira (um conjunto de caracteres) que constitui o próprio símbolo e que representa o conceito — e por isso é que se diz que a nossa escrita é “fonética”. Por exemplo, quando eu escrevo:

“O porco merece esse nome porque é um animal pouco asseado”

Quando eu escrevo “porco”, a imagem mental (da sujidade) do porco é imediatamente colocada na mente de quem escreve e de quem lê. Ora, isto não acontece com a escrita “simbólica”, como é o caso do chinês. Uma reforma ortográfica na língua chinesa seria uma tarefa hercúlea.

Na escrita chinesa, o conceito de “porco” resume-se em um símbolo: , ao passo que o conceito de “porco”, na nossa língua, traduz-se por um conjunto de letras agregadas, isto é, a palavra “porco”. Pode-se defender a ideia segundo a qual “o nosso alfabeto é arbitrário”, mas já não se pode defender a ideia de que a palavra, que traduz o conceito, seja arbitrária. Não devemos confundir o alfabeto, que pode ser arbitrário no seu fundamento e que é a base da escrita da palavra, com a palavra entendida em si mesma que constitui um símbolo.

3/ Um símbolo não é um sinal. Por exemplo, a letra “p” pode ser (pode-se de defender esta tese) um sinal, mas a palavra “porco” é um símbolo e não um sinal. A palavra “porco” tem um representado que é o respectivo animal ou o conceito do animal “porco”.

Um sinal é arbitrário: pode ser mudado sem que o seu significado seja alterado. Por exemplo, um sinal de trânsito pode ser mudado mantendo-se aquilo que ele significava antes da mudança.

Um símbolo não pode ser mudado sem que o seu significado, ou aquilo que ele representa, seja alterado. Por exemplo, se se mudar o símbolo da cruz, no Cristianismo, o seu representado (Jesus Cristo) desaparece ou é radicalmente alterado.

Na nossa escrita existem símbolos (as palavras), e não meros sinais (as letras). Ao alterar a escrita, estamos sempre a “mexer” com símbolos (estamos sempre a “mexer” com conceitos), e não com sinais. Confundir símbolo e sinal, ou é burrice, ou é má-fé.


Adenda:

Convém dizer que Ferdinand de Saussure não estava totalmente certo: hoje sabe-se que pelo menos um conjunto de línguas (ditas “indo-europeias”) tiveram uma origem comum. O que é convencionado é o alfabeto, mas não a origem das palavras que é comum.

Os acorditas confundem “símbolos” (que são as palavras, mesmo sem escrita), por um lado, com “sinais” (que são as letras do alfabeto convencionado), por outro lado.

O facto de as palavras (faladas) de várias línguas terem uma origem comum, embora se escrevam hoje de maneiras diferentes (com alfabetos diferentes), retira o carácter convencional e arbitrário da língua.

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