segunda-feira, 5 de maio de 2014

Um pouco de pedagogia em torno de Heidegger

 

Eu escrevi um verbete com o título “Introdução à Merdafísica de Heidegger”, e um leitor brasileiro fez o seguinte comentário que não publiquei, e explicarei (adiante) por quê. Convém dizer que os comentários dos portugueses são ainda piores, porque não existem: Portugal é hoje caracterizado, em geral, pela ausência de pensamento crítico. Ou melhor: o pensamento português é tão crítico que já ninguém pensa. Pelo menos, os brasileiros ainda pensam alguma coisa...

“Quem é Orlando Braga? Sim, esse é primeiro ponto. Argumento de autoridade. Seria a mesma coisa que um "José da Esquina", enfim, começasse a desmerecer e a «refutar» um Einstein. Orlando Braga é ninguém. Essas linhas não tocam a superfície da filosofia heideggeriana. É muita falta de seriedade, e só pode vir dos descendentes dos mouros. Se quiser ser levado a sério, vá a todas as obras e pensamentos heideggerianos, começando do 1o volume ao último volume. Só que não precisa muito, duvido que entenda até fragmentos, como demonstrou acima. TODA A COMUNIDADE E TODA A HUMANIDADE COMEMORARIA A SUA SUPERAÇÃO À FILOSOFIA, E A FILOSOFIA HEIDEGGERIANA EM PARTICULAR!!!”

Ler o resto aqui, em ficheiro PDF.

Desde logo, no comentário há problemas de língua. Por exemplo, seria correcto escrever “superação da filosofia”, e não “superação à filosofia”. Os portugueses e brasileiros, antes de se arvorarem no direito de fazer críticas, deveriam saber escrever a língua.

Martin-Heidegger-in-Heildelberg-1933Em segundo lugar, o fenómeno dos apaixonados por Heidegger só tem um paralelo nos apaixonados de Nietzsche — assim como Schopenhauer, noutros tempos, exerceu um fascínio especial entre as mulheres devido à sua ética sentimentalista. Essas paixões são literárias e por literatos. As pessoas normalmente confundem literatura (não só a prosa mas também a poesia), por um lado, com filosofia, por outro lado. Filosofia não é a mesma coisa que prosa poética.

Em terceiro lugar, o facto de uma pessoa escrever “mais de 100 livros” não faz dele necessariamente um “grande filósofo”, e ainda menos “o maior filósofo do século XX”. Uma pessoa pode escrever mais de 1.000 livros em torno de um conceito que não esgota a possibilidade de análise retórica desse conceito.

Em quarto lugar, o valor de uma crítica deve ser analisada em si mesma (pelo seu conteúdo), e independentemente de quem a escreve: conta mais a autoridade de facto do que a autoridade de direito. Não devemos dizer que uma crítica é boa apenas e só porque é feita por um professor universitário de nomeada, e, por outro lado, dizer que uma crítica é má apenas e só porque é feita por um “Zé Ninguém”. Quem assim procede incorre em (pelo menos) três falácias lógicas: a falácia ad Hominem (que é evidente, neste caso do comentário: o meu texto é mau porque, alegadamente e sem me conhecer, eu sou apodado de “Zé Ninguém”), a falácia ad Verecundiam, e a falácia ad Novitatem  (quando diz que a minha crítica é baseada em “uma tese filosófica muito antiga”).

O facto de, alegadamente, eu desconhecer algo sobre determinada matéria, ou sobre determinado literato, não significa necessariamente que eu seja um “Zé Ninguém”: há muita gente que desconhece muita coisa e que não é Zé Ninguém. E, por outro lado, pode acontecer que um Zé Ninguém saiba coisas que um literato ou um pretenso intelectual não saiba. Portanto, é essencial que se faça a crítica das ideias entendidas em si mesmas, e não apenas em função de quem as explana.

Em quinto lugar, vamos então à apologia de Heidegger feita pelo comentarista. Escreve o referido senhor:

“Heidegger nessa proposição propõe uma abertura pela pergunta do ser. Para ele, ente é aquilo que é (dito «primeiro» Heidegger). Por que acha o Zé-ninguém Orlando que ele é «mais ente» que um elefante, que uma combustão, que um quark, e, por exemplo, que um glúon?! Todos existem e são. Em qual lugar devemos procurar o ser?! Responda essa Orlando.”

Convém saber o que significa “ente”, segundo Heidegger (ver a ligação). Da noção de ente, segundo Heidegger, não vem mal ao mundo: é “tudo o que nos cerca, nos encontra, nos leva, nos constrange, nos enfeitiça e nos enche, nos exalta e nos decepciona” (nas palavras do próprio). O problema dos apaixonados por Heidegger é que não conseguem entender que o estatuto de “ente” não pode ser concebido de uma forma tal que seja desprovido de uma hierarquia de valores que distingam uns entes de outros entes. Quando Heidegger escreve

todos os entes se equivalem. Qualquer elefante numa selva qualquer da Índia é tão ente como qualquer processo de combustão química no planeta Marte, ou qualquer outra coisa.”

coloca o estatuto ontológico de um elefante em um plano idêntico ao do estatuto ontológico de uma reacção química. Não é preciso entrarmos pela bioquímica adentro para que se demonstre ser evidente que esta ideia de Heidegger está profundamente errada. Heidegger faz poesia, e não ciência; e a filosofia não é poesia!, mas antes é o fundamento da ciência. O erro de Heidegger é tão claro que até cega!

Como se vê, a minha crítica a Heidegger é objectiva. Devemos criticar as ideias de forma objectiva, e não porque não gostamos da cara de um determinado autor, ou porque estamos obcecados e convencidos pelas suas ideias. Devemos, antes de mais, colocar as nossas próprias ideias e concepções em causa: devemos duvidar daquilo que nós próprios pensamos: ¿será que aquilo que eu penso, sobre determinada matéria, se aproxima da verdade? (porque é impossível que possa ser A Verdade). É este o verdadeiro espírito científico que sempre caracterizou a filosofia, e por isso é que Heidegger e Nietzsche, por exemplo, são menos filósofos do que literatos. O domínio da língua é necessário em filosofia, o que não significa que a filosofia seja apenas literatura ou retórica.

Em sexto lugar, o comentarista deturpa a substância da afirmação de Protágoras segundo a qual “o homem é a medida de todas as coisas”, na medida em que coloca essa afirmação em um contexto errado — ou seja, contrapõe a noção de “ente”, de Heidegger, à proposição referida de Protágoras. O “ente”, de Heidegger, é considerado a antítese do relativismo de Protágoras.

Acontece que eu não falei no homem, mas referi-me a um elefante. Há aqui uma quarta falácia lógica: a falácia Ignoratio Elenchi. Em bom português, quando nos deparamos com a falácia Ignoratio Elenchi, normalmente dizemos que “o cu não tem nada a ver com as calças”. Em uma crítica ideológica, não devemos colocar na boca do opositor aquilo que ele não disse ou não escreveu, e não devemos subentender subjectivamente e valorizar objectivamente aquilo que, alegadamente, ele “quis dizer”: devemos analisar as ideias (o texto) de uma forma objectiva.

Ora, acontece que a noção de “ente”, de Heidegger, entendida no contexto segundo o qual “todos os entes se equivalem” (equivalência → “todos os entes têm um valor idêntico”), é uma forma de relativismo na medida em que nega qualquer forma de hierarquia ontológica — assim como Protágoras foi um relativista na medida em que reduziu a realidade do universo inteiro ao Homem. Tanto Heidegger como Protágoras, cada um à sua maneira, negaram e recusaram a hierarquia ontológica (a hierarquia do Ser).

Em sétimo lugar, não devemos confundir “ciência” (entendida segundo o critério do princípio da falsificabilidade de Karl Popper), por um lado, com “cientismo”, por outro lado. Hoje, está na moda misturar estes dois conceitos.

Não é incumbência da ciência investigar o Ser — nem nunca foi. A metafísica pertence à filosofia. A ciência pode (ou não) corroborar a metafísica, assim como a ciência pode (ou não) corroborar a ética — mas não cabe à ciência determinar a metafísica ou a ética. Portanto, colocar a ciência e a filosofia em um mesmo plano de análise epistemológica (como fez Heidegger) é outro erro de palmatória! Mas, pelo facto de a ciência não determinar a metafísica ou/e a ética, não significa que a ciência deva ser tratada como Heidegger a tratou: a ciência também faz parte do Ser (é parte do Absoluto), e como tal deve ser tratada e respeitada.

Por fim: Heidegger está longe de ser “o maior filósofo do século XX”, e é mais um autor de romances metafísicos (uma espécie de novelas de cordel sobre o Ser) do que propriamente um filósofo.

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