quarta-feira, 18 de junho de 2014

Dinossauros, Deus e o Evangelho — David Marçal dixit

 

A Bíblia, no Génesis, diz que o universo foi criado em sete dias. O David Marçal critica aqui quem acredita que o mundo foi criado em sete dias (ou coisa do género). Vamos todos fazer um esforço de pedagogia em relação ao David Marçal porque ele andou na universidade e terá, por isso, capacidade para aprender alguma coisa.

Vamos falar, em primeiro lugar, do que é uma “hipótese”; e depois vamos falar dos dois níveis semânticos dos textos (neste caso concreto, dos textos bíblicos).


É um absurdo que o David Marçal se sirva de um iletrado, que interpreta a Bíblia à letra, para poder afirmar uma pretensa supremacia da ciência na explicação da realidade.

Em matemática, uma hipótese é um postulado, um dado inicial muitas vezes estabelecido por convenção e a partir do qual se tiram logicamente consequências sem que se coloque em questão prévia a sua veracidade. O enunciado das condições de um problema matemático constitui já, em si mesmo, uma hipótese — o que não se passa nas outras ciências.

Nas ciências da natureza, uma hipótese é uma explicação teórica que exige sempre uma verificação; a hipótese difere do episteme e da teoria, porque exige verificação. Por isso, muitas vezes, nas ciências da natureza se declara que determinada hipótese é inverificável e portanto inútil: por exemplo, foram consideradas inverificáveis, inúteis e até absurdas, pela ciência, a hipótese da existência de um continente antárctico, a hipótese da possibilidade de navegação interplanetária, ou a hipótese de existência do homem fóssil.

Com o desenvolvimento científico posterior, a ciência concedeu um alto grau de credibilidade a estas três hipóteses, quando anteriormente eram combatidas pela comunidade científica também por razões extra-científicas. Ou seja, existem hipóteses que a ciência refuta em um determinado momento mas que derivam de conjecturas reflectidas (derivam do episteme ou de uma teoria), e não de uma mera opinião imaginativa.

Para a filosofia, o problema coloca-se de uma forma diferente: basta que exista um mínimo de hipóteses para que se justifique uma teoria. Por isso é que a filosofia é de facto a ciência por excelência (logo a seguir à teologia).

A rejeição céptica e sistemática de hipóteses é produto de uma desconfiança relativamente à imaginação — por exemplo, em Newton, que escreveu que “não forjo hipóteses”, na sua guerra contra Descartes.


No que diz respeito à capacidade de explicação de uma religião, não têm que ser apresentados argumentos filosóficos ou científicos.

A sua verdade (a da religião) deve abranger o domínio sobre o qual não podemos saber nada. Portanto, os argumentos da religião não são hipóteses. A resposta da religião não é uma espécie de cosmovisão, mas antes é uma resposta simbólica; um pouco à semelhança do que acontece na física quântica onde, através de números e/ou fórmulas, tornamos “compreensíveis” processos incompreensíveis, assim também na religião se recorre a imagens e símbolos para se interpretar dimensões do nosso mundo que ultrapassam a nossa capacidade de conhecimento.

Vamos ver, por exemplo, o símbolo bíblico de Adão e Eva (que não é uma hipótese). Os dois vivem no paraíso em conformidade com a natureza; apenas o pecado de ter comido frutos da árvore do conhecimento leva à expulsão do paraíso. Neste símbolo está guardada a memória do facto de o ser humano ter “surgido” (de uma forma que a ciência não explica propriamente, mas apenas especula) a partir de um passado que o coloca ao mesmo nível dos outros seres vivos.

Em um determinado salto qualitativo da condição ontológica do ser humano (que a ciência não consegue explicar através da verificação), o ser humano abandonou esse seu estado de inocência quando o seu cérebro se distinguiu do dos outros animais. Mas, com isso, começou também o drama da existência humana: medo, dúvidas, culpa, e a consciência da caducidade e da morte.

E quando Caim e Abel entraram em um conflito mortal, tornou-se claro que, com e através do conhecimento e com a liberdade, surge a consciência do mal no mundo. Se quiséssemos levar esta história bíblica à letra, acabaríamos no absurdo, porque Caim, depois de ter assassinado o seu irmão, mudou-se para uma outra terra. ¿E de onde veio a mulher de Caim, se ele e Abel são filhos de Adão e Eva? Quem não entende a linguagem simbólica só vê o absurdo na Bíblia.

Há aqui, portanto, dois tipos de burrice: o primeiro tipo é o daquele que interpreta a Bíblia à letra; e o outro tipo de burrice é o daquele que critica a burrice do primeiro para justificar a capacidade científica de uma explicação literal da realidade. No caso do verbete do David Marçal, vemos um burro a criticar outro burro.


Nos textos bíblicos (e religiosos, em geral) devemos distinguir o nível factual, por um lado, de um nível simbólico, por outro lado. Na medida em que o ser humano moderno foi educado segundo a ideia de que as leis da natureza possuem uma necessidade coerciva (o que não é inteiramente verdade!) e que não permitem qualquer excepção (o que é falso!), o ser humano moderno — como é o caso do David Marçal — labora em um mito moderno, ao mesmo tempo que critica os mitos antigos.

Vamos colocar como exemplo o milagre de Jesus Cristo caminhando pelas águas do lago de Genesaré.

No nível factual da semântica bíblica, podemos perguntar: ¿É realmente possível que um ser humano possa caminhar sobre a água, e mais a mais durante uma tempestade?

Para podermos começar a responder a esta pergunta, temos que analisar o termo “realmente”, ou seja, temos que saber o que significa “realidade”. ¿Como surge a nossa “realidade”? Esta é uma boa pergunta que deveria ser colocada ao David Marçal. Contudo, talvez possamos adiantar um esboço de explicação. A teoria da ciência e as reflexões da física moderna já nos demonstraram que a nossa concepção de “realidade” não passa de uma fraca construção que nos permite sobreviver no nosso quotidiano (ver “teoria do balde”, de Karl Popper).

A resposta mais moderna à pergunta ¿O que é a realidade?, é dada pelo construtivismo radical que surgiu com a neurologia e com o estudo do cérebro. Esta teoria construtivista afirma que só os componentes a partir dos quais construímos o nosso mundo, provêm dos nossos sentidos. Ou seja, o fluxo de sinais que aflui ao cérebro (aproximadamente de cem milhões células sensoriais) não é portador de qualquer indicação de quaisquer propriedades para além dessas células — a não ser o facto de estas células terem sido estimuladas em determinados pontos da superfície do corpo.

Portanto, é preciso acrescentar “alguma coisa” aos dados sensoriais na nossa cabeça para que estes possam dar origem a uma “realidade” (Kant tinha razão, neste aspecto). Por outras palavras, os nossos órgãos sensoriais apenas registam diferenças, mas não “coisas” que se pudessem distinguir, enquanto tais, de outras “coisas”. Uma imagem que vemos não é menos o resultado das nossas acções do que uma imagem de pintamos ou de uma casa que construímos. A realidade do nosso mundo é um facto — ou seja, algo que “é feito” por nós. A esse “algo” que é feito por nós podemos chamar de “realidade para nós”, que é uma realidade interpretada por nós. Mas ¿como está estruturada a “realidade em si” (a realidade entendida em si mesma), para além desta nossa interpretação?

A razão humana e a ciência, em princípio, não é capaz de dar uma resposta a esta questão. Um cientista que seja racional e de boa-fé (que parece não ser o caso do David Marçal) tem que falar em “mistério” que está “por detrás” das nossas construções da realidade — mistério esse que nos fornece os dados mas que permanece eternamente incognoscível. Em rigor, o que podemos afirmar, com certeza, sobre a “realidade em si” é aquilo que ela não é (e não aquilo que ela é), porque quando as nossas construções falham, deparamo-nos com a existência de uma indeterminada realidade que está “por detrás” da nossa construção da realidade. Mas dado que só podemos explicar o nosso fracasso através de conceitos que utilizámos para a construção das nossas estruturas falhadas, nunca podemos ter uma imagem do mundo que pudéssemos responsabilizar pelo nosso fracasso.

A construção do nosso cérebro permite-nos a sobrevivência no mundo, e por isso podemos dizer que essa construção está em consonância com a verdadeira realidade (a “realidade em si”) e não em contradição com ela. Mas isso também significa que a ciência e a técnica não têm autoridade para fazer afirmações sobre a “realidade em si”: a ciência só se pode pronunciar em casos concretos em que as suas afirmações ainda não foram refutadas, e só neste sentido poderíamos afirmar que possam estar eventualmente em consonância com a verdadeira realidade.

Por isto tudo, é um absurdo que o David Marçal se sirva de um iletrado, que interpreta a Bíblia à letra, para poder afirmar uma pretensa supremacia da ciência na explicação da realidade.

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