segunda-feira, 9 de junho de 2014

O secularismo, a sociedade de consumo, e a decadência cultural

 

É inevitável uma analogia entre o Ocidente actual e os últimos séculos do império romano, no que diz respeito ao efeito que a religião tem na política e na cultura. A república romana começou por ter a sua própria religião comum e oficial dos “deuses dos lares”, e com a absorção da Grécia e da cultura grega, passou a adoptar oficialmente uma emulação romana dos deuses gregos do Olimpo. Estávamos na fase do início do império.

Na medida em que a cidadania romana foi sendo concedida a indivíduos não romanos e nativos de todas as partes do império romano, foram chegando a Roma cultos religiosos diferentes dos oficiais. Por exemplo, a partir do século II d.C., o culto da deusa egípcia Ísis propagou-se não só no império mas também na própria elite romana que, assim, foi abandonando o culto tradicional dos “deuses do lar” e o panteão assimilado dos gregos. É neste contexto de pulverização da religiões no império romano que surge o Cristianismo que, por sua vez, acabará por se tornar a nova religião oficial do império romano.

A pulverização de religiões, no império romano, coincidiu com o processo de decadência e queda do império. ¿Trata-se de uma coincidência ou haverá um nexo causal? Podemos traçar alguns paralelismos entre o processo de decadência e queda do império romano, por um lado, com o que se passa hoje no mundo ocidental, por outro lado — repito: mundo ocidental, porque o Oriente experimenta um processo histórico e cultural diferente. Mas também existe hoje, no Ocidente, uma tipologia de elementos novos que não existiam no tempo do império romano.

Um elemento novo é a tentativa de criar um substitutivo para a religião através do secularismo transformado em uma espécie de um Ersatz religioso. O pluralismo religioso — a pulverização religiosa — é inseparável do secularismo que é entendido como o distanciamento cultural da sociedade politicamente organizada em relação às religiões em geral. O secularismo é a religião da não-religião, ou a religião a-religiosa.

Peter L. Berger, um sociólogo conhecido e defensor da tese secularização, deu o dito pelo não dito e escreveu recentemente o seguinte:

“O impulso religioso, a busca de um sentido que transcende o espaço restrito da experiência empírica neste mundo, tem sido uma componente constante da humanidade... seria necessário algo que se aproximasse de uma mutação da espécie humana para extinguir definitivamente este impulso.”

É neste sentido que podemos afirmar que o secularismo — e a sua vertente mais radical, o laicismo — é parte de uma forma de religião, ou de religiosidade, se se quiser dizer assim. A espiritualidade está a ser explorada em algumas áreas inesperadas da vida ocidental, e que inclui o mundo dos negócios, e pode incorporar um leque de crenças informadas por qualquer coisa — desde uma casca de amendoim, uma qualquer pedra sagrada, a Diana de Gales ou Elvis Presley, até ao Orixá do Candomblé ou aos caboclos e pretos velhos do Umbanda.

O secularismo é a exploração da espiritualidade humana pelo sistema político imposto pelo conjunto das religiões políticas (leia-se, ideologias políticas em um processo de compromisso precário através daquilo a que se chama “democracia”).

A pluralidade religiosa acompanha a secularização; ou melhor: a secularização, entendida como uma espécie de religião política sincrética que tenta o compromisso entre as religiões políticas, impõe o pluralismo religioso acrítico. As religiões propriamente ditas, quaisquer que sejam, são entendidas pela religião secularista como “escolhas individuais” do cidadão e consideradas “assunto privado”.

As instituições seculares são instituições religiosas que se colocam (a si mesmas) em um plano de valor superior ao plano das religiões tradicionais, por um lado, e das religiosidade privadas e das novas religiões, por outro lado. Neste sentido, o secularismo é uma religião negativa, no sentido em que nega o valor intrínseco de cada uma das religiões tradicionais e de todas as religiões em geral. E em função dessa religião negativa, o secularismo, na sua qualidade de religião oficial do Estado moderno, impõe à sociedade a ausência de valores comuns a que esta possa apelar; o secularismo religioso lembra constantemente aos crentes das outras religiões que a sua fé é escolhida de um conjunto de crenças à disposição, impondo um relativismo religioso que tem como corolário a crença cultural, que subjaz na inconsciência colectiva, segundo a qual “o secularismo é única religião verdadeira”.

A imposição do secularismo como religião oficial do Estado não se pode dissociar da sociedade de consumo (o poder económico da alta burguesia) que se rege por uma insistência (através dos me®dia) na variedade e na “escolha individual” em relação às religiões — excepto em relação à religião secularista que impõe os seus pressupostos ideológicos. E a sociedade de consumo não se pode dissociar da nova mitologia das celebridades, que veio substituir os mitos dos heróis gregos e dos semi-deuses romanos, por um lado, e dos santos das religiões universais, por outro lado.

Ou seja: segundo o secularismo, não existem quaisquer razões aceitáveis para defender os direitos de um conjunto de crenças religiosas em detrimento de outras. Mas esta posição secularista é, em si mesma, uma tomada de posição face à religião; e qualquer tomada de posição em relação à religião faz sempre parte de uma qualquer forma de religião — assim como qualquer posição metafísica, incluindo a negação da metafísica, é sempre uma forma de metafísica. Portanto, não há qualquer dúvida que o secularismo é uma forma de religião, embora negativa.

tumulo de elvis graceland

Eu vejo o Elvis Presley como um músico, mas há quem o veja como um santo, ou pelo pelo menos como um herói mítico. Há quem vá à sua primeira casa, em Graceland, no Mississipi, rezar a uma espécie de “santo Elvis Presley”; a sua casa transformou-se em uma espécie de santuário religioso. Um fenómeno semelhante passa-se com a Diana de Gales: há gente que vai rezar à sua (dela) tumba, não rezando “por ela” mas rezando “para ela”. Já há quem atribua à princesa Diana a operação de milagres de cura e de outras virtudes sobrenaturais.

Graceland-santuarioEste fenómeno de religiosidade pós-moderna e desviante — “desviante” porque não se baseia em uma experiência histórica e intersubjectiva, mas antes baseia-se no primado do subjectivismo da significação do Eu levado quase até ao absoluto — tem a raiz exactamente na sociedade de consumo que impõe a ilusão da absolutização da “escolha individual” (as pessoas convencem-se de que escolhem, quando, em vez disso, são muitas vezes induzidas pelos me®dia a escolher); e no secularismo que é, por assim dizer, a religião negativa que está “por detrás” (que serve de suporte à) da sociedade de consumo.

Este desvio espiritual do homem ocidental vem acentuando o desprezo por qualquer tipo de autoridade, que se deslocou das instituições em direcção do indivíduo entendido como consumidor. “Eu, o consumidor, sou a autoridade” – pensa o vulgo ocidental. “Eu, na minha qualidade de consumidor, decido o que é bom para mim; e, por isso, penso pela minha própria cabeça, decido conforme os meus desejos e entendimento”. É claro que ele decide pouco: antes, é induzido a decidir em função dos me®dia.

A autoridade religiosa não está já na hierarquia clerical, ou na instituição religiosa como corpo comunitário, nem mesmo num Deus transcendente, mas passa a estar no consumidor e na pessoa considerada individualmente mediante a absolutização da significação do Eu (liberdade negativa).



Por fim, já que o relambório já vai longo, o homem ocidental (“homem” entendido no sentido universal, que inclui a espécie humana em geral, e por isso não é necessário estar sempre a repetir “homens e mulheres”, “cidadãos e cidadãs, “trabalhadores e trabalhadoras”, “presidentes e presidentas”, “membros e membras”, “estudantes e estudantas”, “transeuntes e transeuntas”, etc.”) — dizia eu que o homem ocidental convenceu-se de que os santos da Igreja Católica, por exemplo, eram pessoas perfeitas. E aqui a Igreja Católica tem muita culpa na formatação deste mito cultural.

De certa forma, os santos da Igreja Católica substituíram, na cultura antropológica ocidental pós-romana, os heróis míticos e os semi-deuses da antiguidade. Porém, a Igreja Católica associou à santidade uma aura de perfeição que de facto não existe, pelo menos em termos absolutos.

Por exemplo, S. Tomás de Aquino, que é um dos santos da minha predilecção, tinha uma barriga tão grande que, para poder comer à mesa, a ordem dominicana teve que mandar recortar a madeira mesa de acordo com a forma do ventre do santo, para que ele pudesse chegar às travessas. Ora, esse ventre avantajado era causado pelo pecadilho do prazer do prato cheio a que o santo não se furtava.

Portanto, não há nem nunca houve santos perfeitos, porque a perfeição não é humana. Mas a Igreja Católica, de certo modo, alimentou o mito da perfeição dos santos — porque os homens comuns, em geral, não concebem facilmente uma hierarquia dos valores da ética e não conseguem distinguir a metafísica, por um lado, de um prato com batatas fritas, por outro lado. E vem daqui a insistência da Igreja Católica no mito da perfeição dos santos.

O apelo à perfeição dos santos, por parte da Igreja Católica, fez com que o comum dos mortais pós-moderno, sentindo-se incapaz de atingir essa perfeição dos santos, passasse a adorar as celebridades impostas pela sociedade de consumo e pelos me®dia, as quais, sabendo-se de antemão que não seriam perfeitas, correspondiam de algum modo a um estatuto de sobre-humanidade e de excepcionalidade humana— estamos perante uma versão chã e materialista dos deuses do Olimpo com sentimentos e defeitos humanos.

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