sexta-feira, 28 de novembro de 2014

José António Saraiva vs. Lídia Jorge, e a felicidade das mulheres

 

José António Saraiva e Lídia Jorge debateram, por email, a felicidade das mulheres actuais1.

Antes de falar de felicidade, vamos a assuntos mais comezinhos. Por exemplo, segundo um estudo realizado por dois professores da universidade de Chicago, a chamada “libertação da mulher” e o voto das mulheres conduziram ao aumento do peso do Estado na sociedade e ajudou a criar o “big government” actual. Por outro lado, quando a Lídia Jorge diz que “o tempo não volta para trás”, trata-se de um respeitável desejo — mas a História já nos demonstrou que, por vezes, o tempo pode voltar para trás, embora em outro tempo e com outros contornos factuais. É o conceito de “velhice do eterno novo”, de Fernando Pessoa.

O problema não residirá no facto de as despesas do Estado terem aumentado com a “libertação da mulher”: o problema é o de saber se as despesas do Estado com a “libertação da mulher” estão a ser úteis à sociedade e bem aplicadas. E aqui a resposta é um rotundo NÃO! Se o Estado gasta dinheiro para proteger a mulher e a família, estaremos todos de acordo; se o Estado gasta dinheiro para pulverizar a família e atomizar a sociedade — como fazem os Estados da União Europeia, sob orientação desta —, então o dinheiro está a ser mal gasto.

Paradoxalmente, o José António Saraiva assume uma posição de esquerda tradicional e a Lídia Jorge uma posição de direita burguesa — sendo que a Lídia Jorge assume uma posição de direita burguesa e neoliberal para justificar a inevitabilidade da escatologia de esquerda (“os amanhãs que cantam”, a utopia, a certeza inconfessável do futuro); a “exploração do homem pelo homem” é, para a Lídia Jorge, necessária (é um meio necessário) para a realização escatológica da utopia da “igualdade”.

Lídia Jorge serve-se, de forma contraditória, de uma ética utilitarista para justificar um anti-utilitarismo. De modo semelhante, José António Saraiva serve-se de um anti-utilitarismo para justificar um utilitarismo ético-prático.

E o José António Saraiva assume uma posição de esquerda (no sentido da esquerda não marxista do socialismo francês do século XIX e de G. K. Chesterton) quando critica o estereótipo burguês e neoliberal da mulher que está cultural- e economicamente obrigada (forçada) a trabalhar fora de casa.

José António Saraiva sublinha que o homem e a mulher não são intermutáveis — o que coincide perfeitamente com a opinião de G. K. Chesterton; Lídia Jorge defende a intermutabilidade de papéis sociais do homem e da mulher, o que coincide perfeitamente com a opinião dos Rockefeller, dos Rothschild ou de Bill Gates.


¿E o que é a “felicidade”? Seria por aqui que a Lídia Jorge deveria ter começado: por definir “felicidade” — porque, de outro modo, estamos a falar em abstracto. Para definir “felicidade”, temos que recorrer a Santo Agostinho e a Kant.

“Todos os homens2 desejam ser felizes” (Santo Agostinho)3. As múltiplas formas através das quais o Homem pretende ser feliz (por exemplo através da riqueza, do prazer, da virtude), confirma o paradoxo segundo o qual todos aspiram à felicidade “mas nem todos o sabem4 — o que significa que a noção de “felicidade” está presente no mais fundo da alma humana, embora de forma obscura.

A “vida feliz” tem um lado subjectivo: o prazer; “viver feliz” é viver de acordo com o que dá aos homens “os maiores prazeres”. O paradoxo manifesta-se então: “todos querem ser felizes, mas nem todos querem viver da única maneira que permite ser feliz” — porque não basta viver como se quer para ser feliz: “a vontade má, e só ela, torna o homem infeliz”. A má consciência é uma forma de consciência que define o desvio entre a nossa vida e a felicidade. “Todos aqueles que são felizes têm o que querem, mas nem todos aqueles que têm tudo o que querem são necessariamente felizes; mas não são necessariamente infelizes aqueles que, ou não têm o que querem, ou têm o que não é recto querer. Apenas é feliz, portanto, quem ao mesmo tempo tem o que quer e não quer nada de mal”.

Existe, portanto, e segundo Santo Agostinho, um critério objectivo com o qual o prazer deve coincidir para que exista “felicidade”. O fundamento da felicidade reside na sabedoria que é medida e plenitude da alma5.

Kant constata que o mundo não garante uma correspondência entre a virtude dos indivíduos, por um lado, e a sua felicidade, por outro lado. Esta discordância (entre a virtude e a felicidade) é inevitável e exprime o hiato entre a natureza (o reino da necessidade) e a liberdade (que compõe a lei moral). Existe, portanto, uma aporia a que Kant chama de “antinomia”: a razão moral exige a união da felicidade e da virtude, mas a vida no mundo não pode assegurar essa união. Conclui Kant que a solução desta antinomia é dada pela religião 6.

À semelhança de Santo Agostinho, Kant diz que todo o homem deseja ser feliz, e isso é um princípio determinante da faculdade de desejar. Ora, segundo Kant, este princípio é necessariamente de natureza empírica — depende da experiência de cada homem. Ou seja, o desejo de ser feliz não tem as mesmas características em todos os homens; não possui o carácter de uma necessidade e de uma universalidade de uma lei prática aplicável a todos. Mas, na medida em que este princípio depende das experiências e das inclinações de cada um, a vontade não pode ser determinada de modo semelhante por todos os seres humanos — o que significa que se a felicidade constitui o fundamento da relação prática dos objectos com a faculdade de desejar, segue-se então que cada um procura, em cada caso, orientar a sua vontade para satisfações que variam com as inclinações diferentes de cada um.

Portanto, a felicidade não pode determinar precisamente coisa alguma, e mais não é do que uma máxima subjectiva e não uma verdadeira lei prática. Ou seja, Kant separa a moralidade, por um lado, da felicidade, por outro lado. A felicidade é subjectiva; a moralidade é objectiva.


Portanto, a felicidade da mulher (como a do homem) só é possível se ao mesmo tempo ela “tem o que quer e não quer nada de mal” — o que significa aceitar a sua natureza diferente da do homem e agir em função dessa diferença. Tanto em Santo Agostinho como em Kant, a felicidade torna-se objectiva através da ética e da moral, o implica que a felicidade da mulher (tal como a do homem) depende de uma prévia aceitação da sua condição e dos seus limites objectivos e concretos.

Notas
1. quando se fala em “mulheres actuais”, fala-se em juízo universal; hoje, muita gente perdeu a noção de juízo universal devido à predominância do politicamente correcto na cultura
2. extenditur ad speciem humanam, etiam feminis
3. De Trinitate, XIII, IV, 7
4. ibidem
5. Santo Agostinho, De Beata Vita, IV, 32,33
6. quem diz que Kant era contra a religião, está rotundamente enganado! Segundo Kant, a religião é o prolongamento lógico da moral

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