quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

A Raquel Varela e Fourier

 

O socialismo francês do século XIX teve várias tendências — por exemplo, com Jean Jaurés, ou com Proudhon, ou Saint-Simon — e uma delas foi a de Fourier ou também a de Cabet. Fourier defendia uma sociedade sem concorrência na economia; porém, a moral de Fourier era uma espécie de contabilidade do Deve e do Haver herdada do utilitarismo de Bentham. Todo o socialismo francês do século XIX manteve relações ideológicas estreitas com o utilitarismo de Bentham — a que Karl Marx chamou de “moral de merceeiro inglês”.

O utilitarismo do socialismo francês do século XIX, em geral, só se distingue do utilitarismo de Stuart Mill em aspectos formais, e não no conteúdo propriamente dito.

Vamos a Fourier.

“Vi apenas um escritor civilizado que se tenha aproximado um pouco da definição da verdadeira felicidade: é o Senhor Bentham” — Charles Fourier, “Nouveau Monde Industriel et Sociétaire” (1829), capítulo 39.

Para Fourier, “a verdadeira felicidade consiste em ter muitas paixões e muitos meios de as satisfazer” (sic, ibidem). Mas, ao mesmo tempo (“sol na eira e chuva no nabal”), Fourier defende a ideia segundo a qual  o fim da sociedade não é a felicidade individual, mas antes é a felicidade colectiva. Comparado com Fourier, Karl Marx foi coerente.

E para chegar à  felicidade colectiva, Fourier diz que é preciso encontrar o meio de satisfazer as paixões de todos [Kant já tinha demonstrado, por a + b, que isso é impossível!]. Se Fourier critica o egoísmo, faz essa crítica em nome do seu individualismo e do sensualismo. Do ponto de vista da racionalidade da ética e da lógica, Fourier é absolutamente contraditório. Fourier é um hedonista teórico na linha de de Hume e de Mandeville. De todos os socialistas franceses do século XIX, Fourier é o que está mais próximo de Bentham.

A moral de Fourier é, por outro  lado, paradoxal — não tem lógica; é uma espécie de poesia: não compete à  moral servir o interesse (cristianismo), mas antes compete ao interesse servir a moral (gnosticismo escatológico e milenarista) para a construção do paraíso na Terra. Mas, ao mesmo tempo que inverte os termos do fundamento da moral, Fourier defende o princípio utilitarista de Bentham da “maior felicidade para o maior número”.

Fourier não é um asceta: é um hedonista chapado! A moral, em Fourier, supõe a abundância das riquezas; só uma sociedade rica é moralmente digna e uma sociedade pobre é moralmente indigna. Para Fourier, a dignidade do ser humano depende exclusivamente do dinheiro que ele tenha. Fourier acredita que, em uma sociedade de abundância material, os homens deixam de ter razões para ser velhacos, mentirosos ou ladrões — e aqui entra a componente gnóstica e psicótica da fé metastática que acredita na possibilidade de alteração dos fundamentos da natureza humana por intermédio de engenharias sociais.

Naturalmente que algumas pessoas, como é o caso da Raquel Varela que leu “umas coisas” de Fourier quando estudou a história do século XIX, poderão dizer que a utopia de Fourier é anti-utilitarista; mas essa interpretação errada baseia-se na defesa de Fourier de um reino da abundância e de abolição da raridade que deixa sem objecto todo o cálculo de maximização de interesses — o que é um utilitarismo que inverte a lógica do Marginalismo. Na sociedade de Fourier, não há economia: todas as actividades sociais nada mais são do que um puro brincar.



“A forma do que gostamos, do que desejamos, do que vemos e sentimos são menos determinadas pela “liberdade” e mais pelas formas sociais.” — Raquel Varela

Esta é uma proposição gongórica que necessita de ser decifrada.

Em primeiro lugar, não é possível separar a liberdade, por um lado, das formas sociais, por outro  lado.

Entende-se por “formas sociais” a organização da sociedade na sua ordem ética, que influencia a cultura antropológica, a política, e a economia (por esta ordem de valores).

O que tem variado, conforme as modas de cada época, é a noção de “liberdade”; mas a variação de noção de “liberdade” não torna por si só o homem mais livre, ou seja, não é por redefinirmos sistematicamente, ao longo do tempo, o conceito de “liberdade” que nos tornamos mais livres.

Em segundo lugar, as “formas sociais” não determinam a ordem ética preponderante na cultura antropológica (determinismo, ou lógica do formigueiro), mas antes é a ordem ética (os valores que  se escolhem para a ordem da sociedade) que determina as “formas sociais”. Isto ficou bem claro, por exemplo, com a passagem do estertor do império romano pagão e hedonista para a ordem ética cristã da Idade Média.

“A estrutura dos sentimentos – mal-grado quem pensa que os domina – é determinada de fora para dentro e de baixo para cima.” — Raquel Varela

A Raquel Varela está errada, porque tem uma visão determinista do ser humano.

Ela tem uma visão externalista da ética (ver Externalismo). Não é por que uma coisa é desejada (pela sociedade, ou pelo indivíduo) que ela é boa; e também não é por que essa coisa é desejável que ela é boa: pelo contrário, quando uma coisa é escolhida, é supostamente escolhida pelo aspecto de bondade que apresenta.

O problema é o de saber quais os critérios valorativos da escolha da bondade de uma coisa, e esse critério está estritamente ligado à  sensibilidade do ser humano enquanto indivíduo (e não enquanto sociedade ou “formas sociais”), e essa sensibilidade é natural: pode ser, até certo ponto, colmatada com a educação, mas não se aprende na escola. Por isso é que Fourier estava errado.

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