sábado, 28 de fevereiro de 2015

O Miguel Esteves Cardoso tem a certeza de não ter certezas

 

Este meu textículo não é uma crítica a estoutro do Miguel Esteves Cardoso; é apenas a minha manifestação de solidariedade para com ele — desde logo porque não é possível qualquer coerência absoluta no discurso humano.

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O cientista informático Larry Stockmeyer demonstrou que a verificação lógica de apenas 558 teoremas implica a necessidade de um computador do tamanho do universo. Se cada teorema for fraccionado em todas as suas componentes lógicas possíveis, comparando todas as conclusões lógicas, silogismos e sorites, estaremos em presença de fracções na ordem de 10^168 (1 seguido de 168 zeros) — mesmo um computador do tamanho do universo bloquearia ao tentar analisar o teorema número 559. Para verificar as possíveis contradições em apenas 100 proposições, podemos obter um número prolixo de fracções, na ordem de 10^30 (1 seguido de 30 zeros). Pedir a um ser humano que seja totalmente coerente, é uma estupidez.

Mas quando o Miguel Esteves Cardoso tem a certeza de não ter certezas, já tem uma certeza: a de que não tem certezas — o que já não é mau!. Depois, há que saber qual o critério que distingue as certezas certas, por um lado, das certezas erradas, por outro. Uma pessoa pode estar convencida de que a sua certeza é certa, sendo errada, ou pode estar convencida que a sua certeza é errada, sendo certa. E o critério é o da dúvida, e não o da certeza.

A dúvida céptica — que parece ser a do Miguel Esteves Cardoso — conclui com a impossibilidade de se decidir a favor ou contra (alguma coisa). A dúvida metódica (Descartes) consiste em procurar eliminar todas as causas possíveis de erro. Ora, Descartes foi estúpido quando pensou ser possível eliminar todas as causas possíveis de erro —  como  foi demonstrado pelo Larry Stockmeyer. Eliminar todas as causas possíveis de erro é transformar o ser humano em Deus.

Mas a dúvida céptica também não é grande coisa, porque nos coloca perto da liberdade da indiferença do asno de Buridan. As certezas são consequência da nossa experiência pessoal, subjectiva, que nos fazem confundir “certeza”, por um lado, com “verdade”, por outro  lado. Para que o homem vá procurando montar o puzzle da Verdade, tem que ir tendo certezas (ou paradigmas), mesmo sabendo que estas possam estar eventualmente erradas. A certeza é uma muleta racional para a procura da verdade; é uma espécie de cábula que nos permite ir passando nos exames da existência.

O céptico pergunta: “mas ¿a verdade existe?”

Quando se pergunta: “a verdade existe?”, quem faz a pergunta admite, à partida, a possibilidade de uma resposta ― porque caso contrário a pergunta seria estúpida ― e portanto já pressente, ou sabe intuitivamente, que a verdade existe. O que a pessoa que pergunta, não sabe, é qual é a resposta certa em relação à  pergunta, o que significa que o facto de a verdade existir é independente do critério seguro que distinga entre a verdade e a falsidade. Quem pergunta, sabe que a verdade existe; o que não sabe é se aquilo que dizem ser a “verdade”, é mesmo verdade.

Por outro lado, se alguém afirma categoricamente que “não existe qualquer verdade”, pretende afirmar uma verdade, acabando, por isso, por se contradizer ― porque se alguém afirma algo, está convencido que a sua afirmação está correcta e que todos devem corroborar essa opinião. Por conseguinte, essa pessoa pressupõe que existem afirmações que possuem uma validade incondicional, ou sejam, verdades incondicionais. Isto significa também que a proposição segundo a qual “não existe qualquer verdade” pressupõe ― mesmo que essa afirmação possa estar errada! ― que a verdade e o erro se excluem mutuamente, e em consequência, existe entre a verdade e o erro uma diferença que não pode ser relativizada.

Por outras palavras: quando alguém diz que “tudo é relativo porque não existe qualquer verdade”, cai em auto-contradição e na estupidez geral.

Resulta do conflito entre “a verdade que sabemos que existe” (e por isso perguntamos), por um lado, e o critério de apuramento da verdade, por outro  lado — a contradição entre duas  proposições: “nós sabemos que a verdade existe” e “nós não sabemos se a verdade existe”, sendo que estas proposições antagónicas são assumidas simultaneamente. Como as duas afirmações não podem ser válidas ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto, começa aqui o problema. E razão primeira deste problema é que a razão humana é contraditória em si mesma, e por isso é que Descartes é estúpido e o céptico relativista também.

O que se pode dizer sobre a verdade formal (forma da verdade), é que “a verdade absoluta só pode ser pessoal” (Nicolau Hartmann), mas ao mesmo tempo, para que essa verdade absoluta seja verdadeira, tem que ser universal ― quando não tem validade só para mim; a minha verdade absoluta tem que ter algo em comum com todos os seres humanos porque possui a qualidade da verdade, independente de mim. E isto é tudo o que a razão pode dizer sobre a forma, e nada sobre o conteúdo da verdade. O resto pertence à religião interpretada racionalmente.

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