terça-feira, 5 de maio de 2015

Pedro Galvão e o aborto


O Domingos Faria coloca aqui um resumo da tese de Pedro Galvão sobre o aborto.

Antes de mais, como disse Ronald Reagan, “noto que todos os defensores do aborto já nasceram”. Perante uma visão absurda da vida e da realidade, só resta ao Pedro Galvão o seu (dele) cinismo.

Segundo a tese “ética” de Pedro Galvão, a simples abstinência sexual é equiparada ao aborto: por exemplo, um anacoreta que viva isolado na montanha é tão responsável pelo aborto (porque evita ter filhos através da abstenção sexual) quanto a abortadeira mais compulsiva.

Uma das características de Pedro Galvão é a de que propositadamente destrói a noção de juízo universal: é um caso extremo de nominalismo, embora consciente. Ora, um caso extremo de nominalismo é desprovido de lógica, porque a lógica assenta na categorização da realidade entendida como universal tanto quanto possível. Portanto, existe nele uma contradição entre um nominalismo radical, por um lado, e a invocação da razão e da lógica, por outro  lado. Mas essa contradição parece-me consciente e é usada para confundir o leitor ignorante em relação à lógica e à  filosofia em geral. No Pedro Galvão existe má-fé. Aquilo não é filosofia: é ideologia em  Circulus In Demonstrando, em que Pedro Galvão procura a justificação de uma conclusão que ele já tinha definido à partida.

Por exemplo, quando ele invoca o caso concreto e anómalo das irmãs gémeas dicéfalas como paradigma ou mesmo como exemplo válido, Pedro Galvão procura destruir, no leitor, a noção de juízo universal.

Imaginemos que a ciência (por absurdo) descobria o “gene gay”, e que os fetos com o “gene gay” eram sistematicamente abortados.

Provavelmente o Pedro Galvão escreveria outro livro defendendo a tese enviesada de que o aborto é sempre permissível excepto no caso concreto do filho da Maria e do Manel que tinha o “gene gay” — porque a “ética” de Pedro Galvão é uma “ética” que está na moda (Peter Singer: ver a desconstrução da tese dele), e portanto tudo o que está na moda tem que ser defendido (ética reduzida ao Zeitgeist), por um lado, e por outro  lado, a tentativa de destruição do juízo universal é uma característica do politicamente correcto que pretende criar na sociedade um fenómeno transversal de estimulação contraditória, tendo em vista uma dissonância cognitiva generalizada.

O objectivo de Pedro Galvão é estritamente político, e pouco tem de filosófico na acepção racional do termo. Não é por acaso que o livro dele é patrocinado pelo capitalista dos supermercados Pingo Doce (vemos como a direita neoliberal se alia à esquerda marxista nas teses sobre a ontologia).


O argumento de Pedro Galvão da “humanidade do feto” pode ser comparado ao argumento segundo o qual “a galinha existe apenas e só para pôr ovos”. E perguntamos: “¿o que surgiu primeiro: o ovo ou a galinha?”. E o leitor sorri perante o absurdo da pergunta. De modo análogo, o Pedro Galvão divide o ser humano em duas secções: a “secção biológica” e a “secção psicológica” do ser humano (como se o ovo não tivesse nada a ver com a galinha, por um lado, e como se a existência da galinha só se pudesse justificar na medida em que põe ovos).

Quando nós separamos o ovo, por um lado, e a galinha, por outro  lado, chegamos às conclusões a que chegou o Pedro Galvão — porque, para o Pedro Galvão, o ovo não tem nada a ver com a galinha: são coisas distintas entre si e que não apresentam qualquer relação mútua intrínseca (nominalismo radical). Para ele, o “ovo é ovo”, e “a galinha é galinha” — e nada de confusões!, porque não há qualquer relação entre as duas “coisas”. E — pasme-se! — toda a sua (dele) tese da “humanidade do feto” é defendida em nome da lógica e da razão, como se a lógica fosse desprovida de categorização universal.

Quando o leitor se vê confrontado com a pergunta “¿o que surgiu primeiro: o ovo ou a galinha?”, sabe intuitivamente — porque a intuição é uma forma de inteligência — que existe uma relação lógica entre o ovo e a galinha. E sabe também intuitivamente que a galinha não existe apenas para pôr ovos (a utilidade da galinha, ou a utilidade da “consciência de si” no ser humano), mas antes sabe que a galinha existe com valor em si mesma determinado pela Natureza: mesmo que não pusesse ovos (mesmo que não tivesse uma utilidade), a galinha não deixaria de ter valor em si mesma. Mas o Pedro Galvão faz de conta que não sabe; ou então é deficiente cognitivo.


Segundo o argumento de Pedro Galvão da “consciência de si”, os doentes profundos com Alzheimer (porque não têm “consciência de si”) poderiam perfeitamente ser coercivamente conduzidos a uma câmara de gás e assassinados. Peter Singer defendeu esta tese, mas quando a mãe dele passou a sofrer de Alzheimer, contratou médico e enfermeiras para cuidar exclusivamente dela — o que, aliás, lhe fica muito bem. Quando defendemos uma tese ética temos que ser consequentes, ou então somos uns chicos-espertos que estamos a tentar enganar os outros. Peter Singer, para ser consequente, deveria ter condenado a sua própria mãe à morte mesmo que ela não padecesse de qualquer doença somática terminal.

Portanto, o argumento da falta de “consciência de si”, entendido em si mesmo, não é suficiente para justificar o aborto, assim como não é suficiente para justificar a eutanásia — porque a “consciência de si”, na vida do ser humano, é algo contingente (algo provisório, não definitivo, não necessário no sentido de não ser perene ou não ser constante durante a vida de um ser humano).


Pedro Galvão faz uma série de comparações falaciosas e abstrusas. Dois exemplos:

“se um adulto tem direito à liberdade sem uma interferência paternalista, então as crianças, que são potenciais adultos, também teriam tal direito; porém, parece que não há nada de errado na interferência paternalista na vida das crianças para o bem delas. Ora, se essa premissa for falsa, então o máximo que conseguimos concluir é que os fetos têm o direito à vida ‘potencialmente’, mas não ‘efectivamente’.”

Em primeiro lugar, o aborto é considerado à partida, através desta analogia, como um “bem” — porque o aborto é comparado à “interferência paternalista na vida das crianças para o bem delas”.

Compara-se um direito positivo (a educação das crianças) com um direito negativo (o aborto), colocando-os no mesmo plano de análise — o que vai contra a lógica, embora defendida a tese em nome da lógica. Por isso é que os modernos dizem que “a lógica evolui”: a perversão ou destruição da lógica passa a fazer parte da própria lógica.

A confusão ideológica passa a ter a sua própria “lógica” que parte de postulados criados a partir de antíteses dos primeiros princípios — no sentido colocado por Goya: “O sonho da razão cria monstros”. Um destes monstros é o Pedro Galvão, porque parece desprovido de sensibilidade moral e de lógica (porque a sensibilidade moral e a lógica propriamente dita são perfeitamente compatíveis).

“Para o autor este argumento não é convincente, pois há um problema com a analogia: por um lado, não é admissível que nos tivessem cegado dentro do útero; mas, por outro lado, é admissível que nos tivessem abortado. Mas porquê? Porque se nos tivessem cegado, mais tarde isso viria a prejudicar muito a nossa qualidade de vida; no entanto, se nos tivessem abortado, tal não ocorreria uma vez que nunca teríamos chegado a nascer. Todavia, nunca termos chegado a nascer não é algo mau? Se admitirmos isso, temos também de nos opor por exemplo à contracepção ou à abstinência sexual, pois tais actos também poderiam levar a que não tivéssemos nascido. Mas parece não haver nada de errado com a contracepção ou com a abstinência, mesmo que tais actos não permitam o nascimento de incontáveis humanos.”

Aqui, Pedro Galvão consegue uma proeza: conciliar Abelardo com Bentham. Em filosofia, a quadratura do círculo deveria merecer um prémio Nobel: consegue conciliar o consequencialismo com o intencionalismo.

É aqui que o Pedro Galvão conclui que o eremita asceta e abstémio sexual também é culpado de “abortar na forma intencional”, o que aproxima Pedro Galvão de Abelardo, ao mesmo tempo que assim justifica o “aborto útil” à moda de Bentham. Segundo Pedro Galvão, um indivíduo que se abstém  de relações sexuais também está a “abortar intencionalmente” — podemos chamar a esta figura retórica de Pedro Galvão de “aborto em potência”, em contraposição à figura do “aborto em acto”. Seja qual for o comportamento do ser humano, este está sempre a abortar, de uma forma ou de outra.

É “isto” que é apoiado pela Fundação do capitalista dono do Pingo Doce.

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