sábado, 20 de junho de 2015

Fé e Saber

 


Vamos analisar a proposição de Nietzsche : “crença é um desejo de não saber”; e depois a frase de Olavo de Carvalho : “fé não é crença: é confiança”.

 

fe-confia

Em primeiro lugar, uma das características de Nietzsche é a incoerência. Por exemplo, na “Vontade de Poder”, Nietzsche considera a busca de certeza 1 e a procura de fundamento em epistemologia 2 (quaisquer formas do Mito do Dado) inatingíveis e auto-ilusórias. Mas, por outro  lado, quando Nietzsche diz que a “crença é um desejo de não saber”, coloca em oposição os conceitos de “crença” e o de “saber”, fazendo uma distinção positiva e até positivista entre os dois conceitos.

Portanto, é preciso ter cuidado com Nietzsche porque ele sente orgulho na sua própria incoerência propositada.

Há, de facto, uma diferença fundamental entre a simples crença, por um lado, e a fé, por outro  lado. Veremos isso adiante.

A solução para o problema de saber se existe saber, está exarado no enunciado do problema: se é um problema saber se existe saber, é porque o saber existe. O problema real é o de saber em que consiste esse saber.

A resposta de Olavo de Carvalho a Nietzsche baseia-se na dicotomia entre fé (entendida como uma forma de crença) e o saber (que é considerado em oposição à crença e, portanto, uma não-crença). Mas a verdade é que o saber (científico, por exemplo) é apenas uma crença de grau superior. Como dizia S. Tomás de Aquino, “a verdade é a adequação do intelecto à realidade”. Portanto, nunca podemos conceber que conheceremos a verdade, mas apenas podemos conceber a possibilidade de aproximação à verdade.

Na medida em que “a verdade é a adequação do intelecto à realidade”, e por isso uma aproximação à verdade, o conhecimento (o saber) é sempre uma forma de crença, embora de grau superior. Ou, por outras palavras: “as nossas teorias científicas, por melhor comprovadas e fundamentadas que sejam, não passam de conjecturas, de hipóteses bem sucedidas, e estão condenadas a permanecer para sempre conjecturas ou hipóteses” (Karl Popper). 

Por isso, a oposição de “crença” e de “saber” é redundante.

A fé não é um saber; e por isso também não se reduz a uma simples crença.

Muitas vezes, a fé opõe-se à crença (sendo que o saber é uma forma superior de crença). A crença crédula (por exemplo, a ideologia política)  é “pensamento ajoelhado e em breve prostrado” (Alain), ao passo que, na fé, “é preciso crer primeiro e contra a aparência; a fé vai à frente, a fé é coragem” (idem).

O objecto da fé não é demonstrável, mas exige um grau de confiança pelo menos idêntico ao que produziria uma demonstração. Enquanto a simples crença é, o mais das vezes, ingénua, a fé exige um empenhamento lúcido: para que haja fé é preciso que haja razões para crer — e neste sentido podemos dizer que a fé é racional. A fé é a exigência de crer quando se assume um empenhamento que implica riscos e responsabilidade.

No sentido teológico, a fé significa confiança absoluta em Deus (mesmo sem qualquer apoio da razão).

Enquanto que a simples crença conduz à credulidade e ao “sono do espírito” (Kant), em contraponto, a fé é uma crença consciente de ser crença mas que repousa sobre princípios  e implica a decisão da vontade.


Notas
1. Nietzsche confunde “certeza”, por um lado, com “verdade”, por outro  lado.
2. ou teoria do conhecimento.

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