segunda-feira, 14 de março de 2016

Já li o livro “Alentejo Prometido”, do Henrique Raposo

 

Não obstante ter sido escrito em língua crioula, comprei o Alentejo Prometido do Henrique Raposo. E comprei-o mais pela polémica que levantou ainda antes de ser publicado. O opúsculo custou a módica quantia de 3,50 Euros, mas poderia valer até 7 Euros se fosse escrito em português.

Posto isto, vamos ao livro. Trata-se de um ensaio. Li-o de um trago, enquanto o diabo esfrega um olho — o que é bom sinal.

alentejo-hrNão conheço o Alentejo, a não ser a partir da auto-estrada para o Algarve; e confesso que este livro deu-me uma nova imagem do Alentejo, bem melhor do que a tinha mediante preconceitos e estereótipos. Ou seja, o livro coloca em causa exactamente os preconceitos e estereótipos acerca do Alentejo de que os detractores do livro o acusam — porque, através da razão e da epistemologia, compreendemos as causas dos fenómenos culturais e sociais e, em função disso, os preconceitos e estereótipos esbatem-se.

Não concordo com o Henrique Raposo em alguns aspectos do ensaio. Por exemplo, está por demonstrar que a cultura lisboeta (seja o que isso for) é moralmente melhor do que a cultura alentejana. O Henrique Raposo pode preferir uma em relação à outra, mas isso não significa que seja moralmente melhor só porque ele a prefere. Eu, que conheço muito bem Trás-os-Montes (embora não seja de lá), e tentando fazer aqui um paralelismo, sinto (por intuição) que talvez preferisse viver em Foro de Pouca Sorte do que viver em Lisboa — porque, por uma questão de princípio, prefiro a comunidade à rede social anónima e anódina.

Podemos até questionar a noção de Henrique Raposo segundo a qual “em Lisboa há mais liberdade”, tentando saber o que significa “liberdade”: porque se a liberdade é apenas a liberdade negativa que predomina nas grandes cidades, estamos conversados. O problema da cultura alentejana parece ser o de que se coarcta não só a liberdade negativa, mas também a liberdade positiva; como se diz aqui no norte: “não fodem nem saem de cima” — ao passo que, em Lisboa, a liberdade positiva está basicamente entregue ao Terreiro do Paço e ao Poder do Panis et Circus; o lisboeta não precisa da liberdade positiva.

Nas pequenas comunidades, normalmente os dois tipos de liberdade — a negativa e a positiva — estão muito bem delineadas e são fomentadas pelos costumes e pela tradição  local. No caso do Alentejo, tradição e os costumes fazem com que a liberdade negativa seja positiva, e a positiva seja negativa: inverteram-se os pólos do binário da liberdade [terreno fértil para o totalitarismo político; e é esta denúncia do Henrique Raposo que incomoda a Raquel Varela e quejandos, por um lado, e por outro lado, a crítica da cultura intelectual é hoje feita ad Hominem: se, por exemplo, o José Manuel Pureza, do Bloco de Esquerda, afirmar que 1+1=2, então é uma verdade absoluta; mas se for o Henrique Raposo, que não é de esquerda, a afirmar o mesmo, já é um filho-de-puta].

Esta inversão dos pólos da liberdade tem a ver com séculos de História. O Henrique Raposo faz uma boa descrição: 1/ o tipo de ocupação do território (a forma como o território alentejano foi ocupado; 2/ as características geográficas, topográficas e climatéricas do Alentejo. Estes dois aspectos combinados criaram (e só porque são combinados!), com a passagem dos séculos, uma singularidade cultural que não só anula a bipolaridade da liberdade (que é aquilo que o Henrique Raposo chama de “estado de natureza”), mas também, até certo ponto, inverte o negativo e o positivo da liberdade.

Enquanto que no Minho, por exemplo, também existiu uma nobreza solarenga, a distância cultural e social entre a nobreza e o povo (coesão social e cultural) nunca foi tão grande como no Alentejo (devido a uma tradição que já vinha dos suevos). E o centro do país é o território dos municípios. E isto tem a ver com o tipo de ocupação do território, ou pela ausência de tradição no processo de ocupação — por isso é que o Henrique Raposo diz que “só agora o Alentejo está a ser colonizado” quando se tenta impôr no Alentejo a tradição urbana de Lisboa; não sei se isso será bom.

O sentimento anti-clerical do Alentejo tem também a ver com a anulação cultural dos dois pólos da liberdade: a religiosidade alentejana é vivida a sós, porque é impossível que o ser humano não seja religioso. Foi a disfunção social (a falta de coesão sócio-cultural), que marcou a cultura ao longo de séculos, que faz com que se recuse qualquer forma de hierarquia — seja esta social, cultural ou mesmo política.

O livro do Henrique Raposo não é uma crítica ao Alentejo ou aos alentejanos: é um grito de revolta. É a voz de um alentejano que, de certa forma, exige que os dois pólos da liberdade sejam vividos normalmente pelos alentejanos.

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