quinta-feira, 4 de janeiro de 2018

O meu vizinho neurótico

 

Há bons vizinhos, que são aqueles que não chateiam ninguém; ou tomam o cuidado necessário para não chatear ninguém. E há vizinhos autistas, que vivem como se estivessem sozinhos no mundo; e depois há os autistas neuróticos, que são aqueles que desenvolvem rotinas de sofrimento e rituais de auto-sacrifício absolutamente desnecessários. O meu vizinho do lado é um deles.

Ele (o vizinho) tem um filho e uma filha (Le choix du Roi). Do filho nunca tive notícia; parece que saiu de casa antes de eu me tornar vizinho. Da filha não se poderia esperar outra coisa que não fosse o determinismo hereditário. Conheci-a ainda na adolescência, passeando os livros por aí. Houve um Verão em que os pais se ausentaram durante uma semana, mas ela ficou por casa. Depressa me apercebi que um marmanjo se introduzia no apartamento com ela, e naturalmente nela também. E o resultado foi que rebentou a bomba passados nove meses desde que se deu a ausência dos papás. Ela teria, então, uns dezoito anos.

E era ver o vizinho radiante e avô babado a passear na rua o carrinho de bebé. A filha mudou-se — com o marido e “maila” criancinha — para um apartamento a um quilómetro de distância da casa dos papás. Mas não há bem que sempre dure. O vizinho sofreu um acidente de trabalho e teve que ser operado a uma perna — com a consequente reforma compulsiva por invalidez. Azar dos Távoras, a operação foi mal feita, o que piorou o estado do membro inferior (salvo seja!), pelo que teve que ser operado uma segunda vez. O homem ficou reduzido à locomoção assistida por muletas.

Era ver o homem a caminhar quilómetros diários com muletas, primeiro, e sem as muletas, depois. Acentuou-se a neurastenia da criatura quando, por razões que desconheço, a filha maila criancinha foram parar lá a casa, mas o marido esfumou-se. ¿Terá emigrado?, perguntei-me. O que é certo é que o pai da criança desapareceu; nunca mais o vi. E o meu vizinho tornou-se cada vez mais taciturno, quiçá lamentando aquele Verão em que concedeu rédea solta à galdéria. E, volta e meia, a filha do vizinho tinha uma espera à porta do prédio a altas horas da noite — talvez para ir à missa.

Pouco a pouco, através de um esforço hercúleo, o vizinho foi-se libertando das muletas — mas ficou sempre a mancar. O ruído dos passos dele no corredor do prédio são inconfundíveis : tlic, tloc, tlic, tloc. Lá vai o vizinho. E bate a porta do apartamento como se de uma porta de uma quinta se tratasse: com um estrondo brutal, como se através do estrupido manifestasse o seu desprezo pelo mundo. Originalmente, as fechaduras dos apartamentos aqui do prédio dão duas voltas ao ferrolho; mas o vizinho resolveu mudar a fechadura, colocando uma outra com cinco voltas ao ferrolho. Ou seja, depois do fragor do bater da porta, segue-se um estrupício decidido de cinco voltas do ferrolho da fechadura. Bum ! (bate a porta do quintal); e tróc, tróc, tróc, tróc, tróc (as cinco voltas do ferrolho). E depois, tlic, tloc, tlic, tloc, num tropel assimétrico até que desaparece no alvor do dia.

O vizinho sai de casa às sete horas da manhã, para caminhar uns quilómetros. É o meu despertador. Não necessito de relógio. Às sete horas, Bum ! (bate a porta); e tróc, tróc, tróc, tróc, tróc (as cinco voltas do ferrolho). E depois, tlic, tloc, tlic, tloc, com uns sapatos providos de protectores metálicos, pelo corredor afora. Passada uma hora, o vizinho está de volta; e pelas oito horas, ainda no silêncio da matina, o vizinho começa a aspirar a casa. Todos os dias. Até nos dias feriados e de guarda. Nunca me tinha passado pela cabeça que alguém pudesse aspirar a casa todos os dias às oito da manhã.

vizinhoA mulher do vizinho calça os sapatos de salto alto e tlic, tloc, tlic, tloc que se ouvem na vizinhança às sete e meia da manhã. As persianas e janelas são abertas com a displicência estrondosa de quem se está bugiando para o mundo inteiro. No dia de Ano Novo, o vizinho madrugou: saiu de casa às seis da manhã [Bum ! (bate a porta); e tróc, tróc, tróc, tróc, tróc (as cinco voltas do ferrolho). E depois, tlic, tloc, tlic, tloc.] e voltou para aspirar a casa às sete da manhã — quiçá porque terá dormido mal a noite.

Entretanto, a filha do vizinho voltou a sair de casa — mas não com o mesmo marmanjo. O vizinho fez questão de não apresentar o novo mariola à vizinhança, pelo que não se sabe grande coisa das mais recentes embutiduras da menina. E a neurastenia do vizinho foi-se agravando.

Para piorar a situação, o vizinho não consegue esconder o desprezo que sente por mim, porque eu tenho uma cadela Cocker Spaniel Blondie — e o homem tem pavor aos cães. Quando vê a cadela no corredor do prédio e em minha companhia, o vizinho fica paralisado de medo, como se a cadelita fosse um Dobermann. Eu bem lhe digo que “a cadela não faz mal a ninguém”, mas ele olha-me com desprezo e com sobranceria do alto do seu metro e sessenta. Pela primeira vez, em toda a minha vida, alguém com resquícios de nanismo me olhou sobranceiro, e bigodeia-me por detrás de uma pilosidade labial farfalhuda que pretende disfarçar as insuficiências da compleição física de macho. E, à medida em que o vizinho vai ficando careca, a bigodeira vai assumindo cada vez maior importância na assunção da identidade da criatura.

Se eu tivesse um metro e sessenta de altura, tivesse ficado coxo depois de ter sido operado duas vezes a uma perna devido a um acidente de trabalho, e tivesse uma filha puta — talvez eu fosse neurasténico também. E é assim que eu alimento diariamente a paciência necessária para sorrir ao meu vizinho.

2 comentários:

  1. Ahahaha! E não haverá o risco de ele vir a descobrir estes escritos?

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    1. Uma das razões por que ele é neurótico é porque não consegue relaxar a ler qualquer coisa. É um caso de analfabetismo funcional.

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