quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Gadamer, e a estética do olho-do-cu

 

“O que há de inebriante no mau gosto, é o prazer aristocrático de desagradar” → Baudelaire

A questão do “gosto” é das mais difíceis de abordar, se a estética for separada da ética.

Por exemplo, a proposição “os gostos não se discutem” leva-me a concluir, por exemplo, de que o valor da estética do olho-do-cu é tão legítima e valiosa como o valor da estética de uma qualquer pintura de Leonardo da Vinci.

E aqui passamos à perspectiva kantiana que separa o “belo”, por um lado, do “agradável”, por outro lado: para os apreciadores da estética do olho-do-cu, a contemplação de uma imagem anal é agradável porque reflecte os seus (deles) interesses e preferências subjectivos. Para o apreciador da estética do olho-do-cu, não há nenhuma argumentação possível que o demova da sua preferência.


A professora Helena Serrão transcreve aqui um texto de Gadamer acerca do “gosto”. Gadamer invoca a teoria do gosto do judeu de Belmonte, Baltasar Gracian :

« Gracian parte do princípio de que o gosto, sensível, o mais animalesco e o mais íntimo dos nossos sentidos, já contém o ponto de partida da diferenciação que se realiza no julgamento espiritual das coisas.

O diferenciar do gosto, que é, de uma forma mais imediata, o usufruir da receptividade e da rejeição, não é, pois, na verdade, um mero instinto, mas já mantém o meio termo entre o instinto e a liberdade espiritual.

(...)

Existem pessoas que têm uma boa língua, gourmets, que cultivam essas alegrias. Assim, esse conceito do “gusto” é, para Gracian, o ponto de partida para a formação do ideal social de Gracian. O seu ideal do instruído (do discreto) consiste em que o “hombre en su punto” adquire a correcta liberdade de distância com relação a todas as coisas da vida e à sociedade, de maneira que saberá diferenciar e escolher consciente e ponderadamente. (…) »


O problema da tese de Gracian (e de Gadamer, que parece adoptá-la) é o de que parte do princípio segundo o qual o bom gosto é exclusivamente adquirido através da educação (a tal “boa sociedade”). É certo que desde Aristóteles que sabemos que o juízo do gosto é educado; mas, em bom rigor, o bom gosto não se pode reduzir à arbitrariedade de uma convenção que caracterize um determinado espírito do tempo (ao contrário do que é sugerido por Gracian).

Neste aspecto, Gadamer segue o relativismo histórico de Hegel, embora citando o relativismo ético de Gracian. Os três adoptam a validade da estética e a ética relativas a uma determinada época (espírito do tempo). No fundo, trata-se menos de “juízo de gosto” do que um “conformismo cultural”.

“O valor é o espírito em acto” — Louis Lavelle (“Tratado dos Valores”)

Assim como a sensibilidade moral é inata, também a sensibilidade estética é inata (a ética e a estética estão intrinsecamente ligadas) — e ambas são (durante a infância da pessoa) cultivadas através da educação. Ele há espíritos originariamente sensíveis que não foram convenientemente educados (cultivados), mas pressentimos neles a centelha da inteligência ética e estética; mas não há educação estética e ética que valha a um espírito originariamente elementar, empedernido e insensível.

De resto, tanto Gadamer como Gracian esbatem a diferença kantiana entre o “agradável” e o “gosto”: para Kant, se não se pode definir o bom gosto, mas o juízo do gosto não pode ser reduzido a uma opinião arbitrária sujeita ao Zeitgeist (como propõe Gadamer e/ou Gracian).

Gadamer adultera a visão de Kant acerca da estética.


Eu coloco Gadamer e Nietzsche na mesma categoria de filólogos que optaram pela filosofia. São, antes de mais nada, insignes literatos; e só depois se tornaram filósofos. Vemos em ambos o tipo de retórica sinuosa, e a literatice que aliena os sentidos originais dos textos e dos autores que citam nas suas teses.


“(...) na verdade, em que consiste a essência do Homem? Se por ela entendermos a sua essência animal, tal como se fixou mediante a hereditariedade, o que com ela se relaciona é da ordem do factual, e não da ordem do valor; mas se o que entendemos pela sua essência é a sua liberdade espiritual e pessoal, quer dizer, a possibilidade de se determinar a si própria em um ininterrupto progresso interior, então o que tem relação com o valor é o que precisamente exprime a sua relação com o Todo (Absoluto = Todo = Totalidade = Englobante ), é o que aumenta sem cessar a sua participação no Todo e não deixa simultaneamente de o enriquecer e aprofundar.”

→ Louis Lavelle (ibidem)

A verdade é que o mero facto de desejarmos uma coisa, não constitui uma razão ética para agir — assim como o facto de considerarmos algo como sendo agradável não constitui necessariamente um bom juízo de gosto: o que é a razão para agir (ou admirar) é a coisa desejada sob o aspecto da sua bondade/beleza.

Não é porque uma coisa é desejável (ou agradável) que ela é boa (ou bela); ou seja, uma coisa não é boa (ou bela) pela razão do facto de essa coisa ser susceptível de ser desejada (ou considerada agradável). Pelo contrário, quando uma coisa é escolhida, é pelo aspecto da sua bondade (ou pela sua beleza); e a bondade/beleza não é meramente uma noção subjectiva: quando uma coisa é boa/bela para mim, e notória e objectivamente prejudicial a outrem ou à sociedade, não podemos falar em “bondade/beleza” do meu desejo.

Por outras palavras: a nossa vontade não faz parte exclusiva das razões para agir (ou das razões para classificar o “belo”). Mas também não podemos dizer que as razões para considerar subjectivamente uma coisa como sendo boa (ou bela), são também as razões para a querer.

Deveríamos antes dizer que as razões para considerar que uma coisa é boa ou bela, são também as razões para a desejar, quando a desejamos. E essas razões não são exclusivamente subjectivas, porque uma ética (ou estética) subjectivista não é ética/estética nenhuma.

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