Hoje é preciso afirmar pública- e peremptoriamente não só o que é óbvio, mas também o que é auto-evidente.
Há quem diga que a culpa da loucura modernista é de Kant; Kant tem as costas largas. Kant pode ser culpado de muitas coisas, mas não de negar o óbvio e o evidente. Kant foi o último iluminista: o problema da modernidade veio depois dele, já no século XIX, por exemplo, com a influência da Cabala Zoah na filosofia alemã e desde o idealismo monista de Hegel, na esteira de Friedrich Schleiermacher e de Jakob Böhme — já não falando nos monistas Schopenhauer, Lessing, Schelling, todos eles adeptos de uma qualquer forma de monismo.
O problema da modernidade não tem a sua causa directa no Iluminismo (ao contrário do que se diz por aí), mas antes escora-se no Idealismo do século XIX e nas suas sequelas e antíteses (incluindo Karl Marx, que foi buscar a Hegel não só a visão monista do mundo, mas também a dialéctica 1). Como escreveu Nicolás Gómez Dávila : “os monismos transformam-se em panteísmos quando estão em mãos limpas; e em materialismos quando em mãos sujas”.
O pior que nos poderia ter acontecido não foi Kant: foi Hegel ! O espírito crítico sempre foi uma tradição cristã — por exemplo, com S. Tomás de Aquino, ou com Santo Agostinho. No entanto, são os hegelianos actuais (mais ou menos encobertos e disfarçados) que criticam Kant.
Hoje é preciso afirmar pública- e peremptoriamente não só o que é óbvio, mas também o que é auto-evidente.
Por exemplo, é preciso afirmar peremptoriamente que existe uma diferença biológica (cientificamente comprovada) entre a categoria dos homens, por um lado, e a categoria das mulheres, por outro lado. Mas quem afirma essa diferença, que é evidente, corre actualmente o risco de ser sacrificado no altar da desumanidade. Isto nada tem a ver com o legado de Kant que foi um acérrimo crítico do dogmatismo ideológico e da “bovinidade” humana; e tem tudo a ver com o século XIX e do que se desenvolveu a partir dos jacobinos e quejandos, que adoptaram Rousseau.
A ideologia é inimiga do espírito crítico. Esta ideia traduz perfeitamente este trecho de uma tal Sónia Sapage que escreve no jornal Púbico:
« Há uma diferença “colossal” entre educar contra o preconceito e influenciar a orientação sexual de uma criança. Tal como há uma grande diferença entre ter o direito de optar entre fazer ou não fazer um aborto e obrigar alguém a fazê-lo, coisa que a lei nunca permitiu nem permitirá. E o mesmo acontece com a eutanásia. Será sempre uma opção sentida e consentida, nunca uma imposição. A liberdade também é isso: respeitar todas as opções.»
Vemos como ela mistura ali as coisas de adultos (aborto, eutanásia), por um lado, com as das crianças ( “educação” como sendo “sensibilizar crianças de 10 e 11 anos sobre diferentes orientações sexuais”), por outro lado.
A actual ausência de espírito crítico das elites permite que a diferença entre uma criança e um adulto se esbata: para as actuais elites, as crianças são uma espécie de “adultos em miniatura”. Ora, esta ausência de espírito crítico não tem nada a ver com Kant, e tudo a ver com o Romantismo que se seguiu ao Iluminismo.
O que se está a passar na nossa sociedade é tenebroso!; e muito complicado, porque a irracionalidade está na moda.
Hoje, quanto mais irracional se é, melhor apreço se tem da parte das elites! E isto tem a ver com o legado ideológico do Romantismo (Rousseau, Hegel, etc.) que descambou no niilismo de Nietzsche (outro romântico) e de Schopenhauer (outro), e depois, já no século XX, no niilismo existencialista de Heidegger e/ou Jean-Paul Sartre.
Gente que outrora pertenceu à Esquerda moderada, como por exemplo Hannah Arendt, é hoje completamente ignorada pelas elites. Hoje vive-se em um eterno presente (presentismo); eliminou-se o passado. Hoje, as elites não querem que se saiba de onde vieram as suas ideias que pretendem utilizar para controlar o mundo.
A partir de Rousseau, “a educação transformou-se num instrumento da política, e a própria actividade política foi concebida como uma forma de educação” (Hannah Arendt, “Entre o Passado e o Futuro”, 2006, pág. 186).
O papel desempenhado pela educação em todas as utopias políticas, desde a antiguidade até aos nossos dias, mostra bem como pode parecer natural querer começar um mundo novo com aqueles que são novos por nascimento e por natureza. No que diz respeito à política há aqui, obviamente, uma grave incompreensão: em vez de um indivíduo se juntar aos seus semelhantes, assumindo o esforço de os persuadir e correndo o risco de falhar, opta por uma intervenção ditatorial, baseada na superioridade do adulto, procurando produzir o novo como um “fait accompli” [um dado adquirido], quer dizer, como se o novo já existisse.
É por esta razão que, na Europa, a crença de que é necessário começar pelas crianças se se pretendem produzir novas condições, tem sido monopólio principalmente dos movimentos revolucionários com tendências tirânicas, movimentos esses que, quando chegam ao Poder, retiram os filhos aos pais e, muito simplesmente, tratam de os doutrinar.
A educação não pode desempenhar nenhum papel na política, porque na política se lida sempre com pessoas já educadas.
Ora, a educação não pode desempenhar nenhum papel na política, porque na política se lida sempre com pessoas já educadas [adultos]. Aqueles que se propõem educar adultos, o que realmente pretendem é agir como seus guardiões e afastá-los da actividade política. Como não é possível educar adultos [não é possível educar a Sónia Sapage!], a palavra “educação” tem uma ressonância perversa em política — há uma pretensão de educação quando, afinal, o propósito real é a coerção sem o uso da força. Quem quiser seriamente criar uma nova ordem política através da educação, quer dizer, sem usar nem a força ou o constrangimento nem a persuasão, tem de aderir à terrível conclusão platónica: banir todos os velhos do novo Estado a fundar.
Mesmo no caso em que se pretendam educar as crianças para virem a ser cidadãos de um amanhã utópico, o que efectivamente se passa é que se lhes está a negar o seu papel futuro no corpo político, pois que, do ponto de vista dos novos, por mais novidades que o mundo adulto lhes possa propôr, elas serão sempre mais velhas que eles próprios.
Faz parte da natureza da condição humana que cada nova geração cresça no interior de um mundo velho, de tal forma que, preparar uma nova geração para um mundo novo só pode significar que se deseja recusar àqueles que chegam de novo a sua própria possibilidade de inovar. [Hannah Arendt, idem].
Por isto tudo é que o deputado Bruno Vitorino tem razão.
Nota
1. “A negação dialéctica não existe entre realidades, mas apenas entre definições. A síntese em que a relação se resolve não é um estado real, mas apenas verbal. O propósito do discurso move o processo dialéctico, e a sua arbitrariedade assegura o seu êxito.
Sendo possível, com efeito, definir qualquer coisa como contrária a outra coisa qualquer; sendo também possível abstrair um atributo qualquer de uma coisa para a opôr a outros atributos seus, ou a atributos igualmente abstractos de outra coisa; sendo possível, enfim, contrapôr, no tempo, toda a coisa a si mesma — a dialéctica é o mais engenhoso instrumento para extrair da realidade o esquema que tínhamos previamente escondido nela.” (Nicolás Gómez Dávila)
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