terça-feira, 15 de março de 2022

S. Tomás de Aquino e o problema do Belo e do Bem


Aquando do referendo acerca da legalização do aborto a pedido (1997), um militante (de base, de Viana do Castelo) do Bloco de Esquerda argumentou que “o aborto é um acto de amor”; para ele, o aborto encerra ou revela uma certa beleza. Foi então que eu compreendi a enorme complexidade da estética, do gosto e da ética.


Se alguém diz que “o aborto é um acto de amor”, pretende dizer, por um lado, que o aborto é um acto que decorre do amor que se tem pela mulher que engravidou, dando-lhe a possibilidade de eliminação de um empecilho, isto é, eliminação do feto; o acto de abortar passa, assim, a ser algo de belo. Mas, por outro lado, revela a ideia de que o feto não merece qualquer tipo de amor, porque, alegadamente, é apenas um conjunto amorfo de células.

Se a ética e a estética estão intimamente ligadas, vemos então a enorme dificuldade de tornar objectivos os conceitos de “belo” e de “bom” — porque cada pessoa pode julgar o “bom” e o “belo” conforme lhe der mais jeito (subjectivamente).

Se o “belo” e o “bom” são conceitos meramente subjectivos, então segue-se que é perfeitamente legítimo que “o aborto seja um acto de amor”; ou que, para um romântico do século XIX (Lord Byron, por exemplo, ou Wagner), a guerra seja algo de belo.

O mesmo militante do Bloco de Esquerda afirmou, tentando contrariar a minha argumentação: “Cada um tem a sua ética. O mundo é um texto e tudo é interpretação. Não existe uma verdade”. Mas, se não existe uma verdade, também a verdade do militante do Bloco de Esquerda não existe.

¿Ou será que a verdade existe?


Neste texto, Platão dá-nos uma ideia do enorme problema da formulação da estética. Para Platão, o Belo, entendido em si mesmo, existe em uma realidade que é independente do pensamento, da consciência e do espírito humanos. Porém, S. Tomás de Aquino vai mais longe do que Platão:

  1. como todos os seres, o ser humano tende necessariamente para o seu fim e segundo a sua natureza: como todos os seres vivos, o Homem tem um arbítrio e escolhe certos actos entre outros; mas, diferentemente de outros seres vivos, o Homem é capaz de representar o objecto do seu desejo na ausência deste. No ser humano, a vontade é o desejo informado pelo intelecto.
  2. mas, a partir do momento em que o Bem (ou o Belo) se apresenta ao intelecto, este deseja-o naturalmente (mesmo se se mantém a capacidade de se abster). A falta (o erro) consiste em querer um bem particular, que não é o bem devido, e explica-se pela mediação do intelecto: este pode apresentar ao desejo um objecto menos perfeito do que o Bem, e arrastar então para uma escolha desviante.
  3. o desejo humano alcança o seu repouso e o seu cumprimento perfeito na visão do Bem absoluto (Deus) que não depende do ser humano (Realismo).
  4. uma escolha desviante, que não é o bem devido, não deixa de ser um bem — desde Sócrates que sabemos que ninguém faz o mal pelo mal: as pessoas querem sempre um qualquer bem, nem que seja o seu bem exclusivo e egoísta.

Ora, a ideia de que “o aborto é um acto de amor” é a escolha por um bem desviante, que não é um bem devido, porque sabemos que o ADN de um feto é único e irrepetível: “a liberdade humana consiste em querer o que é racional” (S. Tomás de Aquino), e não é racional afirmar que um feto humano não passa de um amontoado amorfo de células, porque a ciência já demonstrou que não é assim.

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