domingo, 17 de agosto de 2014

¿Onde é que José Gil tem razão, e onde não tem?

 

O filósofo José Gil escreveu um texto em 2012 com o título “O Roubo do Presente”. Podem lê-lo aqui em formato PDF, e depois voltem a este verbete. ¿Onde é que José Gil tem razão, e onde não tem?

presentismoDesde logo, e ao contrário do que José Gil defende, não nos foi “roubado o presente” na medida em que vivemos hoje em uma sociedade presentista. E o presentismo é uma mundividência que resulta directamente do utilitarismo: quando o que é importante é — quase exclusivamente — aquilo que é materialmente “útil” a cada “espírito do tempo”, as elites (e as pessoas, em geral) tornam-se “míopes” e as decisões são tomadas em função de um interesse imediatista, e por isso presentista.

A ilusão do “roubo do presente” advém do facto de vivermos em um “eterno presente”; mas este “eterno presente” é a condição do tipo de sociedade em que vivemos que fez a sua própria escolha através das elites que temos. É por intermédio e em função do “eterno presente”, que impera na nossa sociedade, que o passado e o futuro — estes sim! E aqui o José Gil tem razão! — nos foram roubados.

Portanto, não nos roubaram o presente. Acontece que esse presente se tornou absoluto e eterno (presentismo); esse presente eterno, imediatista e utilitário, atingiu um ponto de singularidade e transformou-se no próprio “buraco negro” a que se refere o José Gil. O “buraco negro” não é uma causa: antes, é uma consequência da singularidade presentista.

Assim, “o Poder não destrói o presente”: pelo contrário, o Poder absolutiza o presente de tal modo que o passado é esquecido e o futuro obnubilado.

Através do alastramento de uma cultura presentista, instala-se o conformismo na cultura antropológica, porque se aceita geralmente o princípio segundo o qual o presente eterno dos interesses imediatos inerentes ao “espírito do tempo” não oferece qualquer saída ou alternativa à situação do presente eternamente vivido. Vivemos encurralados em um eterno presente marcado pela primazia do cálculo imediatista de interesses que rege os valores da sociedade.

A “política de austeridade obsessiva do governo” é um produto dessa mundividência presentista: como o futuro está totalmente fechado em função de um eterno presente — e o futuro é considerado pelas elites, ou como absolutamente impenetrável, ou encarado segundo uma metafísica da indecisão —, segue-se que o bem comum é sacrificado no altar daquilo que é considerado “útil” do ponto de vista presentista e imediatista. Se o presente é tudo o que existe, não podem haver soluções de futuro; e segue-se, então, que é apenas e só dentro desse eterno presente que os problemas têm que ser resolvidos.

“Actualmente, as pessoas escondem-se, exilam-se, desaparecem enquanto seres sociais” — não porque lhes tenham “roubado o presente”, mas porque vivem — ou seja, têm a sensação de viver — em um eterno presente. O tempo subjectivo passou a ser eternamente presente. A “atomização da população”, de que fala José Gil, é produto da perversidade do presentismo: há que escolher: ou o presente sempiterno, ou o caos — é o maniqueísmo inculcado na nossa cultura actual: façam o favor de escolher...!

O eterno presente é um limbo; é uma espécie de “purgatório” escolhido por livre-arbítrio; não é uma necessidade nem uma contingência: é uma escolha. Só vive no eterno pressente quem quer, em função de uma cobardia adquirida, ou por influência de um mimetismo cultural. Caberia às elites contrariar este presentismo, mas acontece que é nas elites que se encontra o problema da promulgação do eterno presente.

Em uma cultura de “eterno presente”, não é possível sonhar — porque o sonho é, por natureza, imanente: apela ao futuro e baseia-se no passado.

Escreve o José Gil que “não há tempo (real e mental) para o convívio”. Seria como se um náufrago pensasse que “não há água no vasto oceano”, quando a água é quase tudo aquilo que existe em seu redor.

O que não há, de facto, é o “convívio”, porque se o presente é eterno, deixa de existir a diferença entre o tempo profano — aquele que reservamos para a sociedade — e o tempo sagrado — aquele que reservamos para nós próprios. O eterno presente não permite qualquer diferenciação no tempo subjectivo, e transforma o sujeito em uma espécie de náufrago delirante que perdeu a noção da situação em que se encontra.

José Gil está enganado! Não nos roubaram o presente: tornámos o presente absoluto, e ao fazê-lo, deixamos de ter a noção do que é o presente porque não podemos compará-lo com mais nada — porque o ser humano só conhece mediante os contrastes do espaço e do tempo.

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