sábado, 6 de setembro de 2014

O “a priori” de Kant é axiomático

 

“Se o espaço e o tempo não são estruturas do mundo exterior e sim apenas formas "a priori" da sensibilidade humana como pretende Kant, então é forçoso concluir que sem o advento do ser humano não havia espaço nem tempo, apenas, na melhor das hipóteses, um caos informe e simultâneo. Foi a nossa chegada que criou o "mundo" como estrutura ordenada.

Só há um problema: se não existia espaço nem tempo, não havia também um lugar onde pudéssemos brotar do nada nem um momento onde esse magno acontecimento pudesse ter sucedido.

Portanto, antes de existirmos já tínhamos, no seio do nada, não só o poder de criar-nos a nós mesmos mas também o de instaurar as pré-condições cósmicas da nossa própria existência. O "Fiat Lux" torna-se assim uma imagem literária para designar a auto-criação humana desde o nada. O nada criou tudo e mais alguma coisa. Tente ser kantiano sem esbarrar nesse pequeno detalhe.”

— Olavo de Carvalho (no FaceBook)

Temos que saber o que significa “sensibilidade”, segundo Kant: ele distingue dois elementos da “sensibilidade”: a matéria e a forma (tratando-se de realidades físicas, a forma é tradicionalmente oposta à matéria). O que nos interessa saber, neste caso, é o conceito formal (kantiano) de “sensibilidade”: segundo Kant: o espaço e o tempo são formas a priori (axiomáticas) de sensibilidade, ou seja, estruturas axiomáticas através das quais o sujeito se representa (através de uma interpretação do mundo) através do que lhe é dado aos órgãos dos sentidos.

Segundo Kant, a “sensibilidade” é a condição da possibilidade do exercício do entendimento; o seu papel (o da sensibilidade) é o de referir-se a algo existente fora (no exterior) do sujeito.

Repito: fora (no exterior).

A forma como o ser humano entende o espaço e o tempo (e não me refiro aqui somente ao tempo subjectivo) — segundo Kant — não significa que o tempo e o espaço reais sejam exactamente conformes o ser humano os entende a priori (de forma axiomática). Uma coisa é o modo como o ser humano percebe o espaço e o tempo; outra coisa é o que o espaço e o tempo realmente podem ser.

Por exemplo, as cores são construções dos impulsos eléctricos dos nossos cérebros. Os comprimentos de ondas luminosas transformam-se em cores de uma obra e arte. As quantidades transformam-se em qualidades através da sensibilidade que condiciona o entendimento. Em bom rigor, as noções de “claro” e de “escuro” são construções do cérebro humano — porque no universo real não existem “claro” e “escuro” tal como o ser humano os concebe.

Mas isso não significa — segundo Kant — que a sensibilidade e a inteligência (o entendimento) sejam características exclusivamente humanas — Kant nunca afirmou isso, pelo menos explicitamente. Não nos podemos esquecer de que Kant teve uma educação jansenista.

Kant apenas afirmou que o ser humano detinha essas características (a sensibilidade e o entendimento) — mas nem todos os seres humanos de igual modo: tal como Leibniz e até Aristóteles, Kant defendeu a ideia de que a sensibilidade não é, na sua totalidade, automaticamente adquirida.

Para Kant, “a priori” significava “axiomático” — assim como teorema de Pitágoras é axiomático, ou ideia de que um triângulo tem três lados é axiomática. Um axioma é algo que apresenta um carácter elementar e não carece de demonstração (por exemplo: “o homem pensa”; ou: “num triângulo recto, o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos”).

A sensibilidade humana, segundo Kant, é algo que apresenta um carácter elementar e não carece de demonstração — e neste sentido, a sensibilidade é axiomática ou a priori. Mas Kant nunca disse que a sensibilidade era uma característica exclusivamente humana: pelo contrário, quando Kant colocou a hipótese de haver vida inteligente em outras partes do universo, não restringiu a sensibilidade ao ser humano.

Por exemplo, os axiomas da lógica não são físicos. A sensibilidade é axiomática, o que implicitamente significa que não é física, e por isso não depende do ser humano para existir. O ser humano apenas partilha parcialmente (ou seja: a sensibilidade humana aproxima-se da sensibilidade real, mas não coincide com a Realidade Sensível) de uma sensibilidade axiomática que não depende dele (do ser humano) para existir — e deste sentido, a sensibilidade é a priori.

A estrutura ordenada que o ser humano apercebe na Realidade é o resultado da aproximação a priori (axiomática) do entendimento humano em relação à Verdade — ou, como dizia S. Tomás de Aquino, “a verdade é a adequação do intelecto à realidade”. Na medida em que a sensibilidade e o entendimento humanos se “adequam” à realidade (o que não significa que “coincidam” com a Realidade), surge a percepção de um universo estruturado — que o ser humano intui através do pensamento mas que não pode conhecer (através da ciência) completamente (limites da razão humana).

Eu não simpatizo com Kant, mas não neste caso particular não encontro razões para crítica.

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