quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

As duas culturas de martírio

 

Este texto abaixo foi publicado no FaceBook e a imagem complementa o texto.


“Momento civilizacional em que se é intolerante apenas com quem não é tolerante sem critério nem discernimento (porque é obrigatório tolerar)! Momento civilizacional em que o dicotomismo precipita as consciências a procurarem arrumação entre o estar com "uns" ou com "outros", sem que estejam consigo mesmas (isto é, sem que seja con-scientia).

Momento civilizacional em que se usam palavras sem entendimento do seu significado íntimo, como se torna evidente ao sustentar que o que aqui esteja em causa seja um problema de "liberdade" ou que os matadores são "radicais islâmicos" (radical islâmico é aquele que se diviniza até se dizer Deus... radical islâmico é ser Cristão ou/e hindu... mas esta fica para o ano).

Momento civilizacional em que se deixa de ver que os mortos eram vândalos, violentíssimos, crudelíssimos, ignorantíssimos, e que eram libertinos, não livres! Momento civilizacional em que não se percebe que os matadores e os mortos são o mesmo, a mesmíssima superficialidade sonolenta, vazia e oca, de quem nunca nasceu, de quem nunca morreu, porque foram, uns e outros, ateus e teístas ferocíssimos (conceptualizando de Deus as suas raivas e frustrações, e expectativas e sonhos eventuais), embriagados nos vinhos do senso comum que impulsiona o indivíduo a ser figura-tipo inautêntica, uns defendendo o secularismo cego, os outros sendo o mesmo do lado oposto do mesmo dejecto.

Momento civilizacional em que as alminhas esquecem o que escreveu quem sabia mais que elas, um indivíduo que era vário até deixar de ser figura-tipo e que lembrou os cadáveres adiados de porvir que nunca haveriam de disparar motejos sobre as religiões, porque ao se atacar a religião exterior (aquela que quem a ataca visa, por nem supor o que seja o reverso) impõe-se sombra na dimensão interior para esses desconhecida, e assim se comete um estranho crime de transgressão do que se não sabia existir; por isso seria conveniente a reserva, como as crianças que se guardam de falar do que sabem que desconhecem.

Momento civilizacional em que não se distingue que mortos e matadores cometeram o crime indesculpável de com as suas violências ignorantíssimas ajudar a encerrar os portões de infinito que, paradoxalmente, por estarem já tão indisponíveis nas expressões culturais, são, pelo seu fecho iminente e pelo desespero a que convocam, assim disponibilizadores destas desgraças de uns e outros, desses iguais, deste modo vistos como agressores a si mesmos, como vítimas de si mesmos e do dito momento civilizacional de disseminada ignorância. Momento civilizacional em que ninguém pode já distinguir o que está em causa e que, pela perpetuação deste estado de coisas confuso, disperso, democrático, nunca organizará uma renaturalização civilizacional, antes subtraindo a quem é capaz, a possibilidade de cumprimento vocacional que tudo recomporia.”

charlie


Quem escreveu este texto colocou o acto de assassínio dos jornalistas do Charlie Hebdo, por um lado, e por outro lado as caricaturas desse jornal (por mais obscenas e ofensivas que sejam), no mesmo plano ético — nomeadamente quando escreve:

“Momento civilizacional em que não se distingue que mortos e matadores cometeram o crime indesculpável de com as suas violências ignorantíssimas ajudar a encerrar os portões de infinito (...)”

Ou seja: segundo o texto, o assassínio de 10 pessoas é considerado eticamente equivalente à publicação de caricaturas obscenas e ofensivas.

A verdade é que o assassínio dos dez jornalistas transformaram-nos em mártires de uma religião laicista. De um lado e do outro estamos perante culturas de martírio semelhantes: o martírio laicista, propalado pelos me®dia em nome dos mártires assassinados, por um lado; e o martírio islâmico cujo desfecho será brevemente a morte dos terroristas pela polícia francesa.

Este é o único ponto comum entre os assassinos e os assassinados — porque, do ponto de vista ético, qualquer comparação entre os dois tipos de comportamento não é racionalmente suportável. É mesmo nauseante.

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