segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

¿É a presciência divina compatível com o livre-arbítrio?

 

Se transformarmos Deus num objecto, a Sua existência é por isso causada por um sujeito, e, deste modo, o sentido do conceito de Deus é invertido. Um Deus que existe, não existe. A questão se Deus existe ou não — do mesmo modo em que existe uma pedra ou o vizinho do lado — é uma falta questão.

Quando falamos em “presciência de Deus”, não podemos conceber Deus como um ser que existe da mesma forma que existe um ser humano. O ser humano não pode superar a divisão entre sujeito e objecto, e portanto o próprio conceito de “presciência” permanece no domínio humano do relativo (daquilo que está relacionado com a subjectividade humana).

Em vez de “presciência”, deveríamos talvez falar de “Verdade”: já Descartes dizia que sem Deus não é legítimo utilizar o predicado “verdadeiro”. Para Santo Agostinho, o Absoluto como exigência lógica fazia parte da sua prova do “ser de Deus” (“Eu Sou Aquele que É”)— e não da “existência de Deus”. O Absoluto está para além da dimensão espaço-temporal do sujeito/objecto, embora a englobe. 1 

No Antigo Testamento, Deus é designado como aquele que não está limitado por nada (Re 8, 27), aquele que não pode ser comparado com nada (Sl. 139, 7-12), e como aquele que está sempre presente (Ex, 3,13). Se pensarmos o mundo a partir de Deus, cada forma de aparência do mundo é também uma forma de aparência de Deus que participa nela. O mundo existe, mas em rigor Deus não “existe”: Ele é a causa primeira que torna a existência possível. Deus é a condição da possibilidade de existência que não pode ser, ela própria, existência

Se concebermos a “presciência de Deus” como a manifestação da Verdade Absoluta no mundo, então o conceito de “presciência” começa a fazer algum sentido. A presciência já não se restringe ao espaço-tempo, mas antes é concebida a partir de uma dimensão da realidade que está para além do espaço-tempo.

A “presciência de Deus” não pode ser separada da intervenção permanente de Deus no mundo [Newton, por exemplo]; mas Deus não é um objecto que “existe” no mundo e que, “existindo” no mundo, prevê com toda a certeza o que vai acontecer no futuro da dimensão do espaço-tempo. Deus não é um adivinho.

O conhecimento do futuro do espaço-tempo também é (não só, mas também) uma construção de Deus no mundo. E é na medida em que Deus participa (a um nível diferente da Consciência) na construção do futuro do mundo que podemos falar em “presciência divina” — mas dessa participação permanente de Deus no mundo há sempre um espaço de livre-arbítrio concedido por Deus ao ser humano: sem a liberdade de escolha não existe qualquer Eu nem qualquer autoconsciência. Mas a liberdade de escolha do Homem tem sempre que contar com a intervenção permanente de Deus, seja através das leis da natureza que são obra de Deus, seja através da intervenção directa e permanente de Deus no mundo através do microcosmos [quanteísmo].

Nota
1. não se trata aqui de panenteísmo, nem teísmo, e muito menos de panteísmo. À  falta de melhor nome, chamemos-lhe “quanteísmo”: um conceito diferente de Deus quando comparado com os conceitos referidos.

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