Quando a ciência — na voz de João Malva – diz que “está por provar que o ser humano seja mais inteligente do que os animais”, temos que concluir o seguinte: ou a noção de “inteligência” prevalecente no senso-comum está errada e tem que ser revista, ou então a ciência não consegue provar uma evidência (a de que o ser humano é mais inteligente), o que faz todo o sentido.

Desde logo há aqui um problema: se é verdade que “está por provar que o ser humano seja mais inteligente do que os animais”, então ¿como é possível que um ser humano possa afirmar que “está por provar que o ser humano seja mais inteligente do que os animais”?
Talvez João Malva queira dizer o seguinte: “está por provar que o ser humano seja mais inteligente do que os animais, excepto eu próprio” — porque só havendo uma excepção à regra é que seria logicamente aceitável que alguém (que se exceptua à regra) afirmasse que “está por provar que o ser humano seja mais inteligente do que os animais”. A falta de prova de inteligência não se aplica ao João Malva, mas antes ao ser humano em geral.
Ou seja, segundo o João Malva, há seres humanos que são mais animais do que outros; e eu até concordo: quando eu li essa proposição do João Malva, por um breve momento quase acreditei que ele tinha razão.
Parece que a razão inteligente (passo a redundância), segundo o João Malva, para afirmar que “está por provar que o ser humano seja mais inteligente do que os animais” é a de que “a educação e as vivências determinam muito mais as nossas capacidades cerebrais do que as predisposições genéticas”. O que o João Malva quer dizer é que a inteligência do ser humano enquanto indivíduo depende da cultura antropológica. ¿Podemos, então, afirmar que o ser humano do neolítico, em geral, era menos inteligente do que o ser humano actual?
Ou então, o que o João Malva quer dizer é que o cérebro humano de um feto, por exemplo, não é o mesmo de um ser humano adulto — ou seja, o cérebro humano sofre um processo biológico que lhe permite a inteligência que não tinha no início da vida.
Vou fazer aqui um parêntesis para fazer umas perguntas ao leitor.
¿Quem foi o primeiro ser humano a demonstrar que a terra não é plana (é redonda)? Talvez Kepler? Errado! Foi Parménides, que viveu no século VI a.C.
¿Quem foi o ser humano que mediu, pela primeira vez e com precisão, a circunferência da Terra? Talvez Copérnico? Errado! Foi Eratóstenes que viveu no século III a.C.
¿Quem foi o primeiro ser humano que fez o primeiro cálculo muito aproximado da distância da Terra ao Sol e à Lua?
E ¿quem foi que demonstrou matematicamente e pela primeira vez que a Terra “anda à volta” do Sol e não o contrário (heliocentrismo)? Terá sido Galileu? Errado! Foi Aristarco de Samos, que viveu no século IV a.C.
Portanto, fica provado empiricamente que a inteligência humana tem mais a ver com o indivíduo do que com a cultura antropológica. O argumento da “educação” e da “vivência” é insuficiente — até porque seria difícil explicar, por exemplo e à luz do argumento do João Malva, por que razão Mozart compôs a sua primeira sinfonia aos 4 anos de idade.
Vamos à segunda versão do argumento de João Malva, que é análogo ao argumento de Peter Singer segundo o qual uma criança recém-nascida pode ser assassinada pela mãe porque ainda não é autónoma. É o argumento do “cérebro da criança recém-nascida que ainda não está desenvolvido e não permite autonomia, e por isso as predisposições genéticas contam pouco para a autonomia enquanto sinónimo de inteligência”. É um argumento utilitarista que liga directamente a inteligência à autonomia do ser humano, e que é eticamente inaceitável.
O filósofo americano Thomas Nagel escreveu um ensaio com o título: “¿Como é ser um morcego?”.
Em princípio, e a julgar pela opinião do João Malva, deveria ser fácil responder a esta pergunta: “está por provar que o ser humano seja mais inteligente do que um morcego”, eis a resposta — porque a ciência investiga o modo de vida destes animais. Sabemos que os morcegos percepcionam o mundo exterior em primeiro lugar através de ultra-sons, e que reconhecem, de certa forma, os mesmos objectos que nós. Apesar disso, temos que partir do princípio de que os conhecimentos do morcego não são, de modo nenhum, equivalentes àquilo que nós podemos experimentar e processar espiritualmente. E está aqui o busílis da questão: imaginar como é a tentativa de ser um morcego.
No fundo, é inútil colocar-se mentalmente na situação de um morcego (ou de um qualquer outro animal qualquer): isso revelaria apenas a minha experiência se me comportasse como um morcego — quando, em verdade, o que nós quereríamos saber é “como é ser um morcego”. Thomas Nagel conclui que temos que reconhecer a existência de factos onde nunca podemos penetrar. Mas o João Malva pensa ao contrário: em vez de dizer que “nunca saberemos o que é ser um morcego”, diz ele que “não podemos provar que o ser humano é mais inteligente que um morcego”.
A posição do João Malva é talvez política, mas não científica. Há muito pouco de científico na proposição “está por provar que o ser humano seja mais inteligente do que os animais”; pode ser um argumento filosófico, mas certamente não é científico. Seria a mesma coisa se o João Malva dissesse o seguinte: “a ciência não pode provar que Deus existe, e por isso Deus não existe”.
Está implícita na proposição “está por provar que o ser humano seja mais inteligente do que os animais” a ideia de que é possível que os animais sejam tanto ou mais inteligentes do que os seres humanos, o que significa que o João Malva pensa que sabe o que é ser um morcego.
Imagem respigada daqui.
“Está por provar que o ser humano seja mais inteligente do que os animais."
ResponderEliminarJulgo que essa será talvez a afirmação mais estúpida e descabida que ouvi no último ano ou mais!