quarta-feira, 20 de maio de 2015

Um leitor enviou-me as seguintes questões

 

Um leitor enviou-me as seguintes questões:

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1/ Política é hoje uma forma de evitar qualquer ideia de transcendência humana.

2/ De um lado, temos a medicina tradicional e milenar, uma medicina empírica rica de valores religiosos, morais e culturais intemporais que vale a pena preservar, e que nada têm a ver com os modismos da Nova Era, mas que ainda hoje inspira ciência de ponta.

3/ Do outro lado, a medicina naturalista e cientificista, onde a arte médica está esmagada sob as exigências de gestão, o peso das tecnologias, os procedimentos burocráticos, o consenso científico de painéis ocultos de peritos, investigações a soldo de agendas pouco claras, onde o médico é reduzido à função operária de um sistema criado para alimentar as indústrias associadas à Saúde e à medicina transumanista, onde a metagenómica e a engenharia de tecidos recebem financiamento às toneladas.

3/ Na espiral do silêncio, temos hoje uma medicina praticada nos hospitais assente em modelos do séc. XIX, a patologia celular de Virchow permaneceu na biologia molecular financiada maciçamente pelos Rockefeller, tal como o epifenomenalismo está na neuro-biologia de António Damásio. Como condutora dos ideais progressistas da gnose temos o aparente contrapeso da bio-ética. Na realidade, a medicina está a transformar o corpo de cada humano num campo de concentração da Alma e da Mente, onde os médicos são os carrascos da humanidade.

4/ Como sair da prisão kantiana, onde a Razão é objecto do seu próprio conhecimento, não havendo espaço para Deus, o mistério ou desconhecido? Como resgatar a validade da medicina empírica do engano de Kant e do cepticismo organizado e financiado pelos globalistas, após a transformação da medicina numa indústria e das populações em cobaias de laboratório?

5/ Será possível usar ou defender uma nova ética, recorrendo à criatividade e aos melhores argumentos de filósofos como Alvin Plantinga e similares de forma a conservar o mais possível a essência das medicinas tradicionais e milenares, na medida em que se mantenham actuais e como defesa do Velho Homem (o Homem intemporal - o que implica um espaço para a religião e o transcendente)?

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1/ Desde logo teríamos que definir transcendência para sabermos do que estamos a falar.

A política sempre foi a arte de gestão da pólis. A diferença é a de que, no Ocidente, hoje a política perdeu a referência cósmica da condição humana — que ainda existe em outros países, por exemplo, na Índia — que justifica o paralelismo que Eric Voegelin fez entre a atitude anti-cósmica dos gnósticos da Antiguidade Tardia e novos gnósticos que tomaram o Poder político.

A política nunca foi uma qualquer forma de defender uma “transcendência humana”; nem mesmo as utopias políticas como as de Platão ou Thomas More foram formas de defesa da “transcendência humana”. E nem todas as religiões, mesmo as actualmente existentes, se referem à “transcendência humana”.

2/ Eu não sou especialista em química, e por isso vou apenas aos aspectos gerais.

Uma teoria pode ser credível mas não ser consistente; e pode ser consistente sem ser credível. É o que acontece com os dois tipos de medicina: a medicina científica, mesmo não sendo totalmente consistente, ganhou credibilidade na cultura antropológica (por exemplo, a descoberta da penicilina foi importante); e alguns métodos “alternativos” de medicina, mesmo sendo hipoteticamente consistentes, não ganharam credibilidade suficiente.

Mas nem todos os métodos ditos “alternativos” são consistentes. Por exemplo, a homeopatia não é consistente. Uma teoria é indutivamente consistente quando a previsão de resultados é exacta em uma grande maioria dos casos — por exemplo, em 90 a 95% dos casos. Dizer que a homeopatia, por exemplo, é científica, é irracionalismo que voltou a estar na moda.

É muito difícil a questão de misturar literalmente religião e medicina, seja esta “alternativa” ou científica; podemos atender às duas coisas sem as misturar. Nos hospitais católicos, por exemplo, estão presentes a religião e a medicina sem as misturar — não porque não tenham nada a ver uma com a outra, mas porque pertencem a diferentes níveis da Realidade e têm funções diferentes no processo de cura ou de paliação.

Não devemos colocar em causa a credibilidade da medicina científica, em relação à da medicina “alternativa”, só por causa da burocracia, do tipo de organização, dos interesses financeiros e no negócio da saúde, e de sistema prático de funcionamento.

Quando falamos em medicina científica falamos em método de investigação, e não na organização de sistemas de saúde ou em negócio. Seria coisa semelhante se eu dissesse que um mecânico específico seria incompetente porque a oficina onde ele trabalhasse estaria mal organizada.

O epifenomenalismo está na ciência desde o tempo de Darwin e deu muito jeito, por exemplo, a Estaline e Hitler. António Damásio é apenas um idiota útil.

Vivemos hoje em um tempo de advento de mudança de paradigma na ciência, mas esta mudança só ocorrerá quando a actual geração de cientistas, que já tomou consciência das falhas do actual paradigma mas que não as reconhece publicamente, estiver com os pés para a cova. Esta mudança de paradigma não significa que o darwinismo seja totalmente posto de parte, mas antes que deverá ser conjugado e harmonizado com outras teorias plausíveis.

O epifenomenalismo, este sim, é uma mistura, em um mesmo nível de realidade, de uma religião materialista e imanente, por um lado, e ciência, por outro lado.

4/ Se perguntassem a um ateísta militante, por exemplo, a Bertrand Russell, o pensaria de Kant, a resposta seria extremamente negativa (basta ler o que ele escreveu sobre Kant). Se perguntarem a um cristão praticante vulgar o que pensa de Kant (se é que o conhece), a resposta não seria menos negativa do que a de Bertrand Russell, embora por razões diferentes.

Kant vive num limbo; não agrada nem a gregos nem a troianos; e isso pode ser uma virtude.

Não é verdade que em Kant “não há espaço para Deus”; e por isso é que o ateu Bertrand Russell o odeia. E porque Kant não misturou ciência e religião, os "católicos fervorosos" não lhe perdoam. Kant teve erros, obviamente; mas ao contrário dos ateus em geral, por um lado, e dos "católicos fervorosos" em particular, por outro lado, eu tenho por ele alguma consideração.

5/ A ética tem a ver com meios e fins, e não com as coisas entendidas em si mesmas. A medicina também tem meios e fins, e é a gestão dos meios e fins da medicina que faz parte da ética — e não a medicina em si mesma. Por exemplo, a energia nuclear, entendida em si mesma, não é boa nem má: o que podem ser bons ou maus são os meios e fins que presidem à utilização da energia nuclear. Uma coisa semelhante se passa com a medicina.

Não existe nenhuma razão suficiente para considerar que as medicinas “alternativas” sejam técnica-, científica- ou eticamente superiores ou melhores do que a medicina científica.

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