sexta-feira, 26 de junho de 2015

A alegada “normal relação terapêutica”

 

Uma qualquer forma de perversão da Lógica (da natureza das coisas) causa-me náuseas; admito — que remédio?! — que haja gente que defenda o aborto livre; mas que pretendam subjectivizar o método científico em nome da “ciência”, é insultar-nos a inteligência.

“Na base de qualquer actividade clínica está a relação terapêutica, cujas características ético-deontológicas estão claramente definidas.

A vertente informativa, não directiva e facilitadora da escolha está inerente a qualquer consulta médica desenvolvida com base no modelo biopsicossocial, em particular se o acompanhamento clínico é feito no contexto de uma equipa multidisciplinar e com possibilidades de se desenvolver por etapas - como é, claramente, o caso da interrupção voluntária da gravidez feita por opção da mulher. Nesse contexto, e assumindo que não compete à classe médica determinar as atitudes e regras de qualquer Estado ou comunidade, não posso deixar de sentir como lesivas quaisquer determinações legais que interfiram com o modo como se desenrola a normal relação terapêutica, sobretudo quando se pretende estandardizar o que deve, ou não, ser dito àquela mulher em particular, e como deve ser dito.”

feto-abortado-com-9-semanasNão há, no texto, uma definição de “normal relação terapêutica”, porque se trata de um conceito. É bom que o leitor se dê conta de que existe uma diferença fundamental entre noção, por um lado, e conceito, por outro lado. Uma noção é uma abstracção geral que decorre de uma definição; por exemplo, a definição: “o Homem é um animal bípede, racional, dotado de linguagem e de inteligência”, dá-nos a noção de “Homem”; mas já o conceito de Homem poderia encher os livros de uma biblioteca inteira.

Um caso análogo se passa com o conceito de “homofobia”, porque até hoje nunca vi uma definição (uma noção) de “homofobia”. O politicamente correcto trabalha sempre com conceitos e tem horror mortal às definições.

Um conceito é uma representação mental abstracta e universal que sintetiza as características essenciais de um conjunto ou classe de objectos ou de seres. A sua expressão verbal é o “termo”. Portanto, neste caso concreto, o termo do conceito é “normal relação terapêutica”.

Mas há aqui um problema: é o de que, nas ciências da natureza, o conceito é o produto da abstracção e da generalização a partir de imagens ou de objectos particulares. Esta ideia foi traduzida pelo físico Niels Bohr da seguinte forma:

“O sentido de um conceito só é definido por meio de uma experiência concreta. Nas ciências da natureza, os conceitos não têm sentido no absoluto; a sua definição é apenas operacional.”

Por exemplo, saber se uma partícula elementar é onda ou corpúsculo. Se uma determinada experimentação demonstrar que uma partícula elementar é onda, teremos o conceito de partícula elementar como onda; e se outra específica experimentação demonstrar que uma partícula elementar é corpúsculo, teremos o conceito de partícula elementar como corpúsculo. Para obviar à contradição intrínseca da noção de “partícula elementar”, Niels Bohr criou o conceito de “complementaridade onda/partícula”.

Uma coisa parecida estabeleceu Karl Popper com o princípio da falsificabilidade. Por exemplo, na linguagem filosófica e na do senso-comum, existe o conceito de “Deus” que não pode fazer parte da ciência, porque o termo desse conceito (Deus) não é falsificável. Se eu disser, por exemplo, que “todos os deuses falam grego”, não há maneira de se fazer uma demonstração intersubjectiva — e não meramente subjectiva — do contrário dessa asserção; e, portanto, essa asserção não é falsificável, não fazendo por isso parte da ciência.

Note-se que “demonstração intersubjectiva” é exactamente o mesmo que “demonstração objectiva”.

feto-de-12-semanas-webAquilo que é objectivo em ciência não se restringe à opinião de um médico (por exemplo) em uma situação particular, ou até a um grupo de três ou quatro médicos; o que é objectivo em ciência é aquilo que é aceite — ou deveria ser aceite — pela maioria dos membros comunidade científica, tendo como base a noção de “conceito” segundo Niels Bohr e segundo o principio de falsificabilidade de Karl Popper.

O problema é o de que hoje está na moda afirmar que as ciências sociais e/ou humanas são “ciências exactas”, no sentido em que o método das ciências da natureza (física, química, etc.) se aplica da mesma forma às ciências humanas. É na sequência desta extrapolação absurda do método científico (behaviourismo, por exemplo) para as ciências humanas que surge o conceito de “normal relação terapêutica”.

Em psicologia (por exemplo) não é possível, de uma forma intersubjectiva (ou seja, objectiva) aplicar-se literalmente a noção de “conceito” segundo Niels Bohr, porque no caso da psicologia o objecto da investigação é um ser humano cuja subjectividade é praticamente insondável.

Julgar um ser humano apenas e só pelo comportamento exterior (behaviourismo), e tomar decisões em função deste, é uma doença epistemológica do nosso tempo (cientismo). A forma de pensar da Esquerda cientificista não é eticamente neutra; e mais: é perigosa! Por exemplo, se eu quiser consolar uma criança que chora, não pretendo alterar o comportamento dela, nem impedir que gotas compostas de H2O e NaCl  lhe escorram pela face abaixo: a minha motivação é outra, indemonstrável, não dedutível, mas acima de tudo, humana.

É totalmente errado admitir que a objectividade (intersubjectividade) da ciência está dependente da objectividade do cientista — neste caso, da pretensa objectividade de um médico ou de um psicólogo.

A objectividade da ciência não é uma questão individual dos diversos cientistas, mas antes uma questão extensível a toda a comunidade científica. E a objectividade, em ciência, não é possível da mesma maneira nas Ciências da Natureza e nas Ciências Humanas.


Outro assunto tratado no texto é, alegadamente, “a exigência de sigilo no acto de abortar”. A ideia é a seguinte: mostrar uma ecografia do embrião ou do feto à mulher que pretende abortar, gratuitamente à custa do Estado, e condicionar o acto do aborto a uma assinatura que comprova que ela viu a ecografia, tem duas consequências:

1/ quebra o sigilo do aborto, e, portanto, implica a noção de “culpa”. Veja-se que, para aquela mente aberrante, a culpa vem do exterior, vem do mundo: para aquela avantesma com duas pernas e que se diz psicóloga, a culpa não é uma característica intrínseca do ser humano: não!, a culpa é sempre exógena ao ser humano, a culpa é “culpa da sociedade”. A sociedade é a culpada por alguém sentir culpa.

“Quando alguém me conseguir explicar de que maneira a visualização da imagem ecográfica configura uma informação relevante para a formação da decisão livre, consciente e responsável da mulher que pondera abortar mudarei, de imediato, a minha opinião.”

2/ repare-se na seguinte proposição da minha lavra:

“Quando alguém me conseguir explicar de que maneira a visualização de imagens do holocausto nazi e dos campos de concentração nazis, configuram informação relevante para a formação da decisão livre, consciente, e responsável dos cidadãos face ao fenómeno do nazismo na cultura antropológica, mudarei de imediato a minha opinião no que respeita à exibição pública dessas imagens.”

Quando a ciência é substituída pelo cientismo, e quando a opinião sobre o aborto é culturalmente marcada por gente que nunca pariu nem há-de parir em função de uma idiossincrasia niilista, o que obtemos é a negação da realidade, sobretudo da realidade humana. O que é necessário e urgente é afastar essa gente mentalmente doente dos areópagos da decisão política.

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