domingo, 28 de junho de 2015

Igualdade para todos, para que nós sejamos superiores

 

“Gonçalo Portocarrero de Almada defende que os caracóis não têm direitos. Nisso, estamos de acordo. Mas, quando tenta justificar porquê, lá se vai a nossa breve convergência. Escreve Almada que:

«A polémica questão dos direitos dos animais baseia-se num preconceito: o de que eles são como nós [...]. É verdade que algumas pessoas, de tão brutas, parecem meros animais e alguns animais, ditos irracionais, parecem espertos e afectuosos. Mas são aparências que iludem, porque a distância que vai do mais apto dos símios para o mais estúpido dos homens é infinitamente superior à que dista entre o mais evoluído dos primatas e o mais básico ser vivo.»

Objectivamente, Almada está enganado. A diferença entre um chimpanzé e um humano é minúscula quando comparada à que separa o símio de uma aranha, por exemplo. Mais ainda, nós e os restantes primatas estamos todos equidistantes das aranhas. Mas o problema principal não são os factos. É o raciocínio acerca dos valores.”

Vamos ver.

1/

gnosticismoA ideia de que “a distância que vai do mais apto dos símios para o mais estúpido dos homens é infinitamente superior à que dista entre o mais evoluído dos primatas e o mais básico ser vivo”, é uma evidência.

O que o Ludwig Krippahl quer dizer é o seguinte: “as aparências aparudem: eu conheço o mundo oculto que me revelou que essa evidência está errada: o ADN revelou-me a verdade! Por isso é que o Almada está enganado”.

Portanto, o Ludwig Krippahl considera-se sujeito de uma revelação de tipo religioso que se opõe não só à evidência, mas também se opõe à mundividência religiosa cristã do Padre Gonçalo Portocarrero de Almada. No fundo, no caso de Ludwig Krippahl, trata-se de uma revelação religiosa cientificista que se opõe às aparências que caracterizam a mundividência do senso comum e que se superioriza a essa mundividência porque “lhe foi revelada a verdade” (pela ciência) que o pacóvio do senso comum não conhece.

Ou seja, o Ludwig Krippahl é um gnóstico moderno; faz parte da elite dos novos Pneumáticos que adquiriram o direito à salvação que o comum dos mortais não tem. A diferença entre os gnósticos da Antiguidade Tardia, por um lado, e os modernos, por outro lado, é a de que os gnósticos modernos, na sua maioria, defendem uma espécie de monismo (imanência absoluta da realidade); mas esse monismo baseia-se em um maniqueísmo (polaridade de princípios) que também caracterizou os gnósticos antigos. Aliás, algumas seitas gnósticas da Antiguidade Tardia também eram monistas — ou seja, o maniqueísmo não é apenas característica do dualismo.

2/

A mera comparação de sequências de genes no ADN não dá conta de como um sistema bioquímico complexo obteve a sua função. E o ser humano é, em si mesmo, um sistema irredutivelmente complexo. O conhecido bioquímico Michael Behe faz a seguinte analogia:

“Dois manuais de instruções de dois computadores de modelos diferentes, produzidos pela mesma companhia, podem ter muitas palavras iguais, frases, e até parágrafos, sugerindo um antepassado comum — talvez o mesmo autor tenha redigido os dois manuais. Mas comparando as sequências de letras nos manuais de instruções, nunca nos revelará se um computador pode ser gradualmente engendrado a partir de uma máquina de escrever”.

Na citação, a “máquina de escrever” é uma metáfora do “antepassado comum”, e os “dois manuais de instruções” constituem uma metáfora para “dois genomas diferentes”.

Ou seja, não se segue que porque existem semelhanças de ADN entre espécies diferentes, que essas semelhanças impliquem necessariamente uma aproximação ontológica privilegiada entre membros dessas espécies.

3/

Os gnósticos modernos — como o Ludwig Krippahl — recusam quaisquer privilégios. E porquê? Porque os privilégios são exclusivamente reservados aos detentores do conhecimento que conduz à salvação.

A recusa do privilégio é, em si mesmo, um privilégio da soteriologia dos gnósticos modernos. Para os gnósticos modernos, um privilégio (dos outros, mas não deles!) significa “ausência de responsabilidade”: quem é privilegiado por um qualquer determinismo natural torna-se em uma pessoa inimputável e não passível de ser responsabilizado pelos seus actos. Por isso é que os gnósticos modernos são contra os privilégios.

“Católicos como Almada defendem que as mulheres não têm o mesmo direito ao sacerdócio que têm os homens porque as mulheres não são como os homens, ou que duas pessoas do mesmo sexo não têm o direito de se casarem porque não são como uma parelha de pessoas de sexo diferente”.

O raciocínio é o seguinte: “Os homens, por terem acesso exclusivo ao sacerdócio, são privilegiados em relação às mulheres; mas esse privilégio não implica quaisquer deveres: pelo contrário, implica uma inimputabilidade ontológica e ética”.

A desigualdade (ou seja, a diferença), seja natural ou não, é vista como sinónimo de hierarquia; por isso é necessário que tudo seja igual para que não exista uma hierarquia que desafie e coloque em causa o princípio da hierarquia exclusivista definido pela soteriologia elitista dos gnósticos modernos.

Depois vem a contradição:

« Mas esta ética assente na métrica de diferenças e semelhanças é um disparate. A igualdade de direitos não assenta em qualquer igualdade entre as pessoas, até porque não há ninguém que seja “como nós”. Cada um de nós é um indivíduo único e diferente dos demais. A igualdade nesses direitos é consequência de cada um de nós ter certos deveres para com qualquer um dos outros, seja macho, fêmea, alto, baixo, homo, hetero, católico ou ateu. »

Por um lado, Ludwig Krippahl tinha dito anteriormente o seguinte: “a diferença entre um chimpanzé e um humano é minúscula quando comparada à que separa o símio de uma aranha”. Mas agora diz o seguinte: “esta ética assente na métrica de diferenças e semelhanças é um disparate”. A “métrica das diferenças” só é válida quando convém.

“A igualdade de direitos não assenta em qualquer igualdade entre as pessoas, até porque não há ninguém que seja “como nós”. Cada um de nós é um indivíduo único e diferente dos demais. A igualdade nesses direitos é consequência de cada um de nós ter certos deveres para com qualquer um dos outros, seja macho, fêmea, alto, baixo, homo, hetero, católico ou ateu.”

Por outro lado. parte-se do princípio segundo o qual “igualdade de direitos” significa “igualdade de deveres” — o que é um absurdo: basta verificar, por exemplo, que uma criança não tem direitos proporcionais ou simétricos aos seus deveres. Naturalmente que este facto é uma evidência do senso comum que não se baseia do ocultismo da soteriologia dos gnósticos modernos. Por isso é que quem defende o "casamento" gay como fazendo parte do caminho da salvação, tende a defender (de uma forma inconfessável e hipócrita) a legalização da pedofilia, por exemplo.

O facto de um sacerdote só poder ser homem, dá-lhe mais deveres e mais responsabilidades. Ou, como dizia Karl Popper, o facto de eu ter estudado e me ter instruído, dá-me mais deveres e mais responsabilidades: um privilégio significa um acréscimo (e não um decréscimo ou mesmo ausência de) de responsabilidades e mais deveres. Um privilégio não é a mesma coisa que um direito negativo.

O que acontece é que os privilégios são vistos (pelo Ludwig Krippahl) em função de uma missão messiânica e soteriológica que coloca os gnóstico modernos em uma situação de exclusividade ontológica em relação aos privilégios.

Há os privilégios (que pertencem aos gnósticos, em função de uma revelação da verdade), e os direitos (que são, de uma forma paternalista, igualmente de todos).

A mundividência de Ludwig Krippahl é puritana: a verdade está oculta (no conhecimento e na ciência) e só os gnósticos têm acesso a ela e, por isso, só eles serão salvos. Neste sentido, a concessão da igualdade de direitos para os Hílicos é uma forma de auto-afirmação de uma superioridade moral dos Pneumáticos inerente a uma casta puritana que se julga superior ao comum dos mortais. É o conceito de “igualdade para todos para que nós sejamos superiores”.

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