“Nas religiões, teologias e tretas afins, o procedimento padrão é assentar argumentos dedutivos numas poucas premissas tidas como inquestionáveis. Que Deus existe e inspirou a Bíblia ou que os astros influenciam a nossa vida conforme a sua posição aparente, por exemplo. Se a ciência fosse assim, realmente seria apenas mais uma treta. Mas não é.
A ciência não deduz uma conclusão a partir de um conjunto de premissas. A ciência procura as melhores explicações admitindo todas as premissas. Por exemplo, se admite a premissa de que a Terra é plana, admite também que pode ser cúbica, ou esférica ou esferóide alargada no equador. Admite também várias hipóteses sobre fios de prumo, relógios solares, esquadros e réguas. Depois interpreta a sombra ao meio dia a várias latitudes e os eclipses lunares à luz de cada combinação de premissas – não há dados brutos que possam ser apreendidos sem assumir nada – e nota que, na vasta maioria dos casos, as coisas não encaixam. Eventualmente, isto obriga a concluir que a Terra é aproximadamente esférica, mais uma data de coisas. Que por sua vez levantam novas questões, inspiram novas fornadas de hipóteses e novas iterações do processo. Sem nunca acabar.
A ciência não assume à partida que isto ou aquilo é que é verdade. Explora continuamente todas as hipóteses em aberto à procura das melhores explicações.”
O Ludwig Krippahl vê a ciência como uma espécie de investigação do Monsieur Poirot: perante o crime, todos os intervenientes são suspeitos à partida. A diferença é que o Monsieur Poirot descobre a verdade, mas a ciência (segundo o Ludwig Krippahl) não. Obviamente que o raciocínio do Ludwig Krippahl é falso; só não sei se ele procede propositadamente ou não.
De facto, à semelhança da actividade do Monsieur Poirot, a ciência é uma actividade de resolução de problemas; mas a ciência parte sempre de uma premissa inquestionável: se o problema existe, terá que existir uma solução para ele: é esta a fé do cientista, que é a maior de todas porque é inconfessável. Portanto, a ciência assume à partida que é possível resolver problemas e descobrir a verdade — porque, de contrário, a ciência não faria qualquer sentido; se assim não fosse, a ciência seria a encarnação de Sísifo.
Ao contrário do que o Ludwig Krippahl, a ciência deduz, de facto, conclusões a partir de premissas: a essas premissas chamamos de “paradigma”.
Tal como acontece em todos os fenómenos humanos, ciência depende da cultura de um determinado tempo. Ou seja, a ciência tem modas; essas modas são as premissas (o paradigma) que o Ludwig Krippahl nega que existam. Por exemplo, enquanto um aristotélico via no pêndulo a queda lenta de um corpo sustentado (por um fio), o newtoniano via nele um movimento isócrono. São duas formas diferentes de ver o mesmo problema.
Ao contrário do que o Ludwig Krippahl diz, a ciência — leia-se: “comunidade científica”, composta por seres humanos — escolhe as premissas que pretende adoptar (o paradigma). E mais!: um paradigma (um preconceito científico) não é rejeitado na base de uma comparação das suas consequências e da evidência empírica. A rejeição de um paradigma (de um preconceito científico, ou de uma premissa) estabelecido, é uma relação de três termos: o paradigma estabelecido (as premissas em vigor), um paradigma rival, e a evidência observacional. Mas estes três termos, por si só, não bastam...!
Tal como acontece na ideologia política e na cultura em geral, a mudança de paradigma (e para além dos três termos referidos) só acontece se existir uma linguagem independente do paradigma em vigor na qual se possa registar os resultados da observação — observação essa que não passa de uma interpretação.
Através de uma nova linguagem, opera-se uma mudança de Gestalt que dá lugar a uma alteração de paradigma na ciência. Os paradigmas (os preconceitos científicos, as premissas) em competição não são comensuráveis: “os proponentes de paradigmas em competição fazem as suas transacções em mundos diferentes” (Thomas Kuhn). Em diferentes paradigmas, as respostas aos problemas podem diferir relativamente aos tipos de resposta supostamente admissíveis.
É disto que o Ludwig Krippahl tem medo, ao afirmar erroneamente que “a ciência não deduz uma conclusão a partir de um conjunto de premissas”: tem medo que as suas crenças ditas “científicas” se tornem obsoletas.
Conclusão: a ciência é uma crença, embora de grau superior; mas não deixa de ser crença.
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