sábado, 29 de agosto de 2015

Ludwig Krippahl, a ciência e a moral — Parte III

 

“Nas religiões, teologias e tretas afins, o procedimento padrão é assentar argumentos dedutivos numas poucas premissas tidas como inquestionáveis. Que Deus existe e inspirou a Bíblia ou que os astros influenciam a nossa vida conforme a sua posição aparente, por exemplo. Se a ciência fosse assim, realmente seria apenas mais uma treta. Mas não é.

A ciência não deduz uma conclusão a partir de um conjunto de premissas. A ciência procura as melhores explicações admitindo todas as premissas. Por exemplo, se admite a premissa de que a Terra é plana, admite também que pode ser cúbica, ou esférica ou esferóide alargada no equador. Admite também várias hipóteses sobre fios de prumo, relógios solares, esquadros e réguas. Depois interpreta a sombra ao meio dia a várias latitudes e os eclipses lunares à luz de cada combinação de premissas – não há dados brutos que possam ser apreendidos sem assumir nada – e nota que, na vasta maioria dos casos, as coisas não encaixam. Eventualmente, isto obriga a concluir que a Terra é aproximadamente esférica, mais uma data de coisas. Que por sua vez levantam novas questões, inspiram novas fornadas de hipóteses e novas iterações do processo. Sem nunca acabar.

A ciência não assume à partida que isto ou aquilo é que é verdade. Explora continuamente todas as hipóteses em aberto à procura das melhores explicações.”

Ludwig Krippahl

O Ludwig Krippahl vê a ciência como uma espécie de investigação do Monsieur Poirot: perante o crime, todos os intervenientes são suspeitos à partida. A diferença é que o Monsieur Poirot descobre a verdade, mas a ciência (segundo o Ludwig Krippahl) não. Obviamente que o raciocínio do Ludwig Krippahl é falso; só não sei se ele procede propositadamente ou não.

De facto, à semelhança da actividade do Monsieur Poirot, a ciência é uma actividade de resolução de problemas; mas a ciência parte sempre de uma premissa inquestionável: se o problema existe, terá que existir uma solução para ele: é esta a fé do cientista, que é a maior de todas porque é inconfessável. Portanto, a ciência assume à partida que é possível resolver problemas e descobrir a verdade — porque, de contrário, a ciência não faria qualquer sentido; se assim não fosse, a ciência seria a encarnação de Sísifo.

Ao contrário do que o Ludwig Krippahl, a ciência deduz, de facto, conclusões a partir de premissas: a essas premissas chamamos de “paradigma”.

Tal como acontece em todos os fenómenos humanos, ciência depende da cultura de um determinado tempo. Ou seja, a ciência tem modas; essas modas são as premissas (o paradigma) que o Ludwig Krippahl nega que existam. Por exemplo, enquanto um aristotélico via no pêndulo a queda lenta de um corpo sustentado (por um fio), o newtoniano via nele um movimento isócrono. São duas formas diferentes de ver o mesmo problema.

Ao contrário do que o Ludwig Krippahl diz, a ciência — leia-se: “comunidade científica”, composta por seres humanos — escolhe as premissas que pretende adoptar (o paradigma). E mais!: um paradigma (um preconceito científico) não é rejeitado na base de uma comparação das suas consequências e da evidência empírica. A rejeição de um paradigma (de um preconceito científico, ou de uma premissa) estabelecido, é uma relação de três termos: o paradigma estabelecido (as premissas em vigor), um paradigma rival, e a evidência observacional. Mas estes três termos, por si só, não bastam...!

Tal como acontece na ideologia política e na cultura em geral, a mudança de paradigma (e para além dos três termos referidos) só acontece se existir uma linguagem independente do paradigma em vigor na qual se possa registar os resultados da observaçãoobservação essa que não passa de uma interpretação.

Através de uma nova linguagem, opera-se uma mudança de Gestalt que dá lugar a uma alteração de paradigma na ciência. Os paradigmas (os preconceitos científicos, as premissas) em competição não são comensuráveis: “os proponentes de paradigmas em competição fazem as suas transacções em mundos diferentes” (Thomas Kuhn). Em diferentes paradigmas, as respostas aos problemas podem diferir relativamente aos tipos de resposta supostamente admissíveis.

É disto que o Ludwig Krippahl tem medo, ao afirmar erroneamente que “a ciência não deduz uma conclusão a partir de um conjunto de premissas”: tem medo que as suas crenças ditas “científicas” se tornem obsoletas.

Conclusão: a ciência é uma crença, embora de grau superior; mas não deixa de ser crença.

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