sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Ludwig Krippahl, a ciência e a moral — Parte II

 

Se eu vejo alguém dar um pontapé num cão e este gane, determinar se o cão sofreu ou não com o pontapé não é um problema científico: é uma questão metafísica e de intuição. A intuição diz-me o seguinte: se eu levar com um pontapé, também sofro; portanto, aplica-se aqui a regra de ouro: não faças aos outros o que não queres que te façam. A regra de ouro não tem nada a ver com a ciência: pertence à ética que se liga intrinsecamente à metafísica, que são partes da filosofia.

Mas o Ludwig Krippahl diz que não: diz que determinar se o cão sofreu ou não com o pontapé, é um problema científico. Já lá iremos; mas antes vamos desmontar um sofisma do Ludwig Krippahl: diz ele:

Na matemática, na lógica e na metafísica podemos estipular verdades por definição. Por exemplo, na álgebra da escola primária é verdade que 1+1=2, na álgebra de Boole a verdade é que 1+1=1 e nada nos impede de inventar uma álgebra na qual 1+1=3”.

O que o Ludwig Krippahl se refere é à chamada “álgebra da lógica”, expressão criada por volta de 1850 pelo matemático Boole para designar a sua própria construção da lógica dita “tradicional” sob a forma de símbolos matemáticos que a aproximam de um “cálculo de classes”, ou seja, de uma série de manipulações que obedecem a princípios de extensão ou de redução dos diferentes conceitos. A chamada “álgebra da lógica” de Boole foi mais tarde englobada naquilo a que chamamos hoje “logística”.

“Logística” é o termo adoptado no princípio do século XX para designar o conjunto de processos e sistemas que fundam a lógica como coerência de símbolos sujeitos a um número de regras fixadas e decididas livremente, sem referência aos hábitos intuitivos de significação nela referenciados e igualmente matematizáveis. A logística quer ser também o “jogo da escrita” comum às diversas ciências, incluindo uma lógica diferente da lógica “tradicional” — mas nada ainda provou que esta lógica “nova” não se reduz àquele “jogo da escrita”, de facto continuamente obrigado a ir buscar o fundamento dos seus exercícios à lógica dita “anterior” ou à experiência empírica.

cientismo2Portanto, misturar em uma mesma analogia, a lógica dita “tradicional”, por um lado, e a logística, por outro lado, ou é erro ou má-fé. Por exemplo: o facto de eu pintar um quadro de uma paisagem não significa que o meu quadro traduza fielmente a paisagem; a construção pictórica que eu faço da paisagem baseia-se sempre em uma realidade (a verdade) que lhe é anterior e que é a sua causa. Assim como a lógica não evolui, aquela paisagem corresponde a uma realidade que não evolui consoante as diferentes pinturas que se façam dela.

Ao contrário da matemática, que parte de postulados, a lógica parte de axiomas. Quando o Ludwig Krippahl se refere “às verdades por definição”, está a falar de postulados que caracterizam a matemática. O “axioma” é coisa diferente do “postulado”: o axioma é toda a proposição que apresenta um carácter elementar e que não necessita de demonstração. Por exemplo, na geometria plana, duas rectas encontram-se ou não; e neste último caso chamam-se “paralelas”. E os axiomas da Física não são físicos. Ou o seguinte axioma: em um triângulo recto, a soma dos quadrados dos catetos é igual ao quadrado da hipotenusa; não cabe na cabeça de ninguém que esta verdade seja “definida” pelo ser humano; ou que os seres humanos tenham inventado os números primos, que são axiomáticos por natureza.

Outro exemplo: a proposição “o homem pensa” é axiomática; não carece de demonstração, ao contrário do que acontece com os postulados matemáticos.


Inventar afirmações que pretendem descrever a realidade, por si só, não nos dá conhecimento. Para a sabedoria é preciso também identificar, entre essas infinitas possibilidades, quais as que melhor correspondem ao que queremos descrever. Isso é o que faz a ciência e é por isso que «“a ciência é a única forma de se saber a verdade”».

A história da ciência está cheia de afirmações (proposições) inventadas que pretendem descrever a realidade.

Por exemplo, Newton inventou o conceito de “absoluto” para escorar a sua mecânica. Ou a invenção da teoria de contracção de Lorentz e do éter, que foi uma invenção para descrever a realidade. Ou mesmo Paul Feyerabend, que afirmou que “em ciência vale tudo” — o mesmo Feyerabend que assumiu uma posição radicalmente contra a filosofia da ciência.

A ciência é feita por homens — e não por semi-deuses, como implicitamente pretende o Ludwig Krippahl. O cientista não está acima da condição humana, por mais que o Ludwig Krippahl pretenda que esteja.

A filosofia será sempre necessária para controlar a ciência, porque:

1/ existem relações dedutíveis (a lógica) entre teorias e leis empíricas;

2/ existem numerosas leis empíricas que são “relativamente estáveis e aproximadamente precisas”.1


“A mente humana é constituída de tal forma que o erro e a mentira podem sempre ser expressos de maneira mais sucinta do que a sua refutação. Uma única palavra falsa requer muitas para ser desmentida.” — Olavo de Carvalho

Em uma terceira parte, falarei do resto da treta do Ludwig Krippahl.


Nota
1. “enquanto se pode considerar que todas as teorias nasceram falsas (ou nascem) — ou seja, que todas elas sofrem de anomalias empiricamente demonstráveis, existem milhares de leis empíricas que — pelo menos num certo âmbito das variáveis relevantes — não necessitam de qualquer revisão ou correcção durante décadas, — algumas perduraram durante séculos de desenvolvimento científico”. [Herbert Feigl, Empiricism at Bay?, 1974]

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