terça-feira, 22 de março de 2016

O Alexandre Castro Caldas e a eutanásia

 

Regra geral, quando um homem da ciência aborda a ética, não sai coisa boa. O Alexandre Castro Caldas deveria preocupar-se com o epifenomenalismo próprio da neurologia, em vez de se meter por becos que desconhece.

“O problema [da eutanásia] não é, também, de natureza religiosa, podendo, no entanto, ser considerado de natureza espiritual. É, sem sombra de dúvida, uma questão de ciência médica que tem que saber recrutar os seus melhores recursos para combater o sofrimento e trazer quem sofre à qualidade de vida que todos merecemos. Mas sobretudo temos que concordar que o problema não é de natureza política, e muito menos será de desentendimentos entre esquerda e direita”.

Alexandre Castro Caldas


No tempo de Aristóteles, praticava-se o infanticídio; o próprio Aristóteles defendeu o infanticídio. Hoje, Peter Singer defende o infanticídio por razões utilitaristas (utilidade). Mas não é por que um facto existe, que se pode defender uma norma que o legitime. Quando nos baseamos em factos para defender a imposição de uma norma (moral ou jurídica), incorremos no sofisma naturalista.

A ciência não pode determinar os valores da ética. A ideia de “responsabilidade moral” reside na experiência subjectiva, enquanto que a ciência só concebe acções determinadas pelas leis da natureza, e não concebe autonomia, nem sujeito, nem consciência e nem responsabilidade. A noção de “responsabilidade” é não-científica. A ética e a moral pertencem ao domínio da metafísica que se caracteriza pela falta de “bases objectivas”.

O Alexandre Castro Caldas revela a ignorância que grassa na nossas elites. Estamos entregues à bicharada. Por acaso, ele não defende a eutanásia; mas só por acaso, porque quando ele diz que o problema da eutanásia é, “sem sombra de dúvida, uma questão de ciência médica”, verificamos a precariedade da sua posição.

A normalização da eutanásia (porque é disto que estamos a falar: da normalização, da criação de uma norma), é um problema político, embora não seja uma questão partidária. O Alexandre Castro Caldas confunde “partidos políticos”, por um lado, e “política”, por outro lado.

E a eutanásia é um problema político porque se confunde o conceito de “autonomia da pessoa”, por um lado, com “individualismo” (partidos da direita) ou com “colectivismo” (partidos da esquerda), por outro lado. A partir do momento em que a realidade é definida como uma “construção social e cultural”, surge o individualismo (direita) e o colectivismo (esquerda) que já pouco têm a ver com o conceito de “autonomia da pessoa”.

O que une o Rui Rio (direita) ao João Semedo (esquerda) na defesa da eutanásia é a ideia de que a realidade é um produto de uma “construção social e cultural”.


eutanasia-cadeiras

Sendo um problema político, a eutanásia é também um problema religioso no sentido da cultura antropológica:

A ética está para a moral, assim como a musicologia está para a música. Podemos dizer que a ética está mais próxima das determinações do comportamento da subjectividade activa dos indivíduos, enquanto que a moral é a exigência universal irredutível e transcendente. A ética radica-se nos valores, ao passo que a moral radica-se na lei — lei esta que, nos tempos modernos, é escorada no enquadramento jurídico que pretende (e consegue-o, até certo ponto) moldar os costumes e a tradição da cultura antropológica.

A ideia, absurda, segundo a qual é possível existirem valores da ética sem lei moral, é uma característica do pós-modernismoporque a própria ausência de lei moral universal é, em si mesma, uma lei moral. Quando a lei moral não é universal, continua a existir uma lei moral que, neste caso, determina que ela não é universal. E quando os valores da ética não têm correspondência na lei moral, a ética deixa de fazer sentido na cultura antropológica: seria como se um musicólogo e se alheasse do sentido da música que estuda.

Os valores da ética existem por si mesmos: não podem ser deduzidos de qualquer utilidade. Assim, por exemplo, o valor da justiça vale por si, o que pode ser compreendido por cada ser humano. Se fizéssemos depender o valor da justiça de algo que não estivesse — de um modo ou de outro — já incluído no seu significado; se deduzimos o valor da justiça da utilidade ou de uma oportunidade política, o valor da justiça estaria em uma situação muito precária (que é o que acontece hoje na nossa “democracia”).

A diferenciação cultural introduzida pelos monoteísmos, e principalmente pelo Cristianismo, introduziu na cultura antropológica a noção do “realismo na ética”, segundo o qual os valores da ética existem por si mesmos, e não podem ser deduzidos de qualquer utilidade. Neste sentido, concordo com o Alexandre Castro Caldas: a eutanásia é um retrocesso civilizacional, porque também é um problema religioso.

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