sábado, 26 de março de 2016

O Anselmo Borges e o maniqueísmo moderno

 

“Quando se pensa em Deus e na morte (a dupla face do absoluto), é no abismo da perplexidade que se cai. Pascal disse-o de modo inexcedível: "Incompreensível que Deus exista, e incompreensível que não exista; que a alma seja com o corpo, que não tenhamos alma; que o mundo seja criado, que o não seja, etc." Ninguém pode dizer que sabe que Deus existe ou que não existe. Deus não é "objecto" de saber, mas de fé. Há quem acredita e há quem não acredita e uns e outros crêem, com razões”.

Anselmo Borges


“Se a carne veio à existência pelo espírito, é uma maravilha; mas se o espírito veio à existência pelo corpo, é a maravilha das maravilhas. Eu, no entanto, maravilho-me com isto: como esta grande riqueza ficou nesta pobreza.

(…)

Ai da carne que depende da alma; ai da alma que depende da carne”.

→ Evangelho (apócrifo) de S. Tomé 1 


Como tem acontecido, os textos do Anselmo Borges causam-me “comichão intelectual” — porque me parece que a diferença entre nós é espiritual (no sentido do NOUS aristotélico). Por exemplo, é certo que Deus não é objecto de saber, porque não podemos conhecer o Seu conteúdo; mas podemos conhecer a Sua forma. E conhecer a forma de algo também é um modo de saber. O Anselmo Borges parece conceber o “saber” como “saber científico positivista”; mas a verdade é que esse saber só resolve problemas secundários. Mais importante que saber, é aprender (pelo menos protege-nos do tédio).

O negócio que Pascal fez com Deus é um utilitarismo. “Toma lá, dá cá. Acredito em Ti porque é mais seguro — não vá o seguro morrer de velho!”. Por isso é que é raro que eu invoque Pascal naquilo que escrevo.

A crença não pode ser reduzida ao que é útil, porque a crença é uma disposição do espírito que traduz (no ser humano) a existência de um problema teórico: “¿por que razão isto é assim, e não de outra maneira?”.

Em função do problema teórico, surge a crença, qualquer que seja, e que é sempre uma forma de fé. A diferença é que a fé é uma crença que implica confiança — e por isso é que “a fé do cientista é a maior que existe, porque é inconfessável.” 2

O problema do ateu é o de saber em o que ele confia. Uns confiam na ciência, outros na humanidade, outros em nada. Cada um tem o direito de confiar em qualquer coisa ou de não confiar em nada; mas isso não significa (logicamente) que as razões individuais e atomizadas do ateu sejam equivalentes às razões do homem religioso — como parece pretender dizer o Anselmo Borges —, porque no homem religioso está presente o “fim último” que racionaliza (de um modo fundamental) a crença religiosa. A fé faz parte da racionalidade (da Razão). Não existe fé, propriamente dita, sem a Razão (Santo Anselmo).

O fundamento de toda a realidade (Deus) concedeu ao ser humano a liberdade (livre-arbítrio). Mas “ai da carne que depende da alma; ai da alma que depende da carne”. E para os Maniqueus modernos que dizem que “Deus não pode ser” porque o mundo não está em ordem, “Eu, no entanto, maravilho-me com isto: como esta grande riqueza ficou nesta pobreza”.


Notas
1. repare-se como o Cristo faz a diferença entre alma e espírito
2. Roland Omnès, físico francês, professor de Física Teórica da Faculdade de Ciências de Orsay, Paris

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