sábado, 9 de abril de 2016

Os dogmas católicos e a física quântica

 

Os dogmas cristãos consistem na tentativa de codificar (formalizar) as experiências de convivência com o mistério de Deus, conservando, ao longo de séculos, as experiências intersubjectivas com Deus sob a forma de teses. A religião propriamente dita cria comunidade, e por isso tem que possuir conteúdos universais — mesmo que esses conteúdos se encontrem no limite daquilo que é exprimível em termos da lógica. Os dogmas cristãos são pilares impregnados no terreno do inexprimível para delimitar um espaço claro de comunicação para uma comunidade; os dogmas foram arrancados ao silêncio: são uma tentativa paradoxal de exprimir aquilo que não pode ser expresso por palavras, mas que quer ser exprimido.

Porém, a linguagem corrente e comum consiste em conceitos universais. Em rigor, o ser humano só pode entrar em comunicação sobre aquilo que nele não é individual. Por isso, no quotidiano, falamos sempre sobre temas a que todos (ou quase todos) têm acesso.

Mas um dogma cristão é uma afirmação sobre a realidade que está para além daquilo é alcançável através da linguagem corrente. Para que as experiências intersubjectivas com Deus, e as imagens que as representam e evocam, possam fundar uma comunidade que perdura há mais de dois mil anos, elas são formalizadas em dogmas.


A física quântica tem uma situação semelhante aos dogmas da Igreja Católica.

A física quântica, tendo-se construído em ruptura com conceitos que nos são familiares, teve que forjar outros conceitos fora da linguagem corrente, que estão tão afastados da experiência corrente (experiência no sentido do “empírico”) que se perde toda a intuição sensível e empírica desses novos conceitos, e quase todo o contacto. Por outras palavras, a física quântica abriu um espaço ou um hiato entre o concreto e o abstracto (tal como acontece com o dogma católico). Tudo se passa como se a física quântica se tivesse desembaraçado da linguagem corrente graças a uma formalização integral do seu conteúdo. Ora, o objectivo da comunicação e da vulgarização da física quântica é precisamente dizer tudo por palavras — e por isso existe aqui uma antinomia (tal como acontece com os dogmas religiosos).

Essa antinomia, que torna difícil uma transmissão ou comunicação metafórica através da imagem ou da linguagem, não é fácil de ultrapassar — porque há uma grande dificuldade em explicar o seu conteúdo à luz da linguagem corrente, e porque “explicar qualquer coisa a alguém” é colocar essa coisa em relação a noções já conhecidas, ou, por outras palavras, com noções que lhe são familiares e que quase todos têm acesso.

Por isso é que, à luz da linguagem corrente e da mentalidade do Homem contemporâneo (incluindo a maior parte dos filósofos modernos), os conceitos da física quântica não são considerados interessantes (tal como acontece em relação aos dogmas cristãos) — porque entram em um domínio que está para além da linguagem corrente; ou então, esses conceitos quânticos são deformados pelas filosofias New Age, como por exemplo, com o uso que se faz do conceito quântico de “não-separabilidade”: ao contrário do uso vulgar do conceito, a não-separabilidade não implica a transmissão instantânea de energia ou de sinais à distância — exactamente porque o fenómeno da não-separabilidade ocorre fora do espaço-tempo.

Tanto os dogmas cristãos como os conceitos da física quântica encontram-se em um domínio que está para além da linguagem corrente. E num caso como no outro, o concreto é o abstracto que se torna familiar pelo hábito.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Neste blogue não são permitidos comentários anónimos.