quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

O maniqueísmo politicamente correcto da “ciência que só tem um lado”

 

O Carlos Fiolhais plasmou no seu (dele) blogue um texto de uma tal Vera Novais acerca da “ciência oficial”, por um lado, e dos “hereges”, por outro lado — é claro que o Carlos Fiolhais faz parte da versão correcta da ciência que é aquela que faz parte do paradigma vigente.

Pelo que compreendi, a tal Vera quis saber se o leite faz mal ou bem à saúde, e para isso parece que “recorreu à ciência” que, diz ela, “se opõe à pseudo-ciência” — para escrever um artigo sobre o assunto (artigo esse a que eu não tive acesso, e até seria prolixo e improfícuo que eu tivesse porque não é isso que me interessa agora).

O que me interessa saber, da tal Vera, é esta proposição :

“ (Ela) não tinha de ouvir dois lados da questão, tinha de ouvir apenas um: o lado da Ciência”.

É claro que o Carlos Fiolhais, o sumo-sacerdote da ciência oficial e sacrossanta (positivista) em Portugal, tinha que vir a terreiro dar a bênção à Vera Novais. O problema é que a ciência tem de facto “vários lados”, ou seja, podemos dizer que “existem vários lados da ciência”.


Não existe uma ciência de observação pura, mas apenas ciências (mais ou menos) consciente- e criticamente teorizantes. Dessas “ciências teorizantes” nasce o “paradigma” do espírito do tempo, que pode estar mais ou menos errado, uma vez que não existe nem certeza nem verdade em ciência, mas apenas uma maior ou menor “aproximação à verdade”.

A condenação do cientismo ou cientificismo — ou seja, a condenação da crença dogmática na autoridade do método científico e nos seus resultados — é totalmente pertinente e válida.


Talvez a fonte mais segura para saber “se vai chover amanhã” é a experiência (humana) do velho jardineiro profissional — ele engana-se tanto com o tempo quanto o meteorologista encartado de televisão.

De modo semelhante, o facto de o ser humano (o homo sapiens sapiens, nómada e/ou sedentarizado) se ter alimentado de leite (e de lacticínios em geral) e de carne animal, desde que há memória (arqueológica), diz-nos que o leite (em juízo universal) não pode ser nocivo à saúde humana (porque se o fosse, o ser humano ter-se-ia extinguido). Este facto faz parte da tradição que a ciência (ou o método científico) não pode fazer de conta que não existe. A ciência depende imenso da tradição (facto este que os “progressistas” do esquerdalho abominam).


Em ciência (ou em epistemologia), a indução é uma inferência conjectural ou não-demonstrativa; ou seja, é o raciocínio que obtém leis gerais a partir de casos particulares. O método científico baseia-se na indução que, por sua vez, se baseia nas estatísticas que pertencem ao passado (não existe nenhuma garantia absoluta — a não ser a garantia da esperança que Deus nos dá — de que o Sol irá nascer amanhã, nem mesmo com a experiência do jardineiro).

Ao contrário do que acontece na dedução — na indução, as conclusões de um raciocínio não são logicamente necessárias. Na sequência de David Hume, filósofos como por exemplo Karl Popper insistiram no “círculo vicioso” da indução evocando, por exemplo, o princípio da regularidade dos fenómenos naturais (vemos aqui a obra de Deus), que é em si mesmo um princípio geral que, portanto, não pode ter sido estabelecido indutivamente. Karl Popper tira daqui o argumento para recusar à ciência fundar-se na indução.

David Hume rejeitou o princípio da indução, que, aplicado à questão causal, diz que

se A foi frequentemente acompanhado ou seguido de B, e se não se conhece nenhum caso em que A não seja acompanhado ou seguido de B, então é provável que na próxima ocasião em que A seja observado, seja acompanhado ou seguido por B.

Se o princípio é adequado, um número suficiente de exemplos dá uma probabilidade vizinha da certeza (ou da verdade), e as inferências causais rejeitadas por Hume são válidas, não decerto para nos dar certeza, mas probabilidade praticamente suficiente.

Mas, se (o princípio) não é verdadeiro, todo o esforço de obter leis científicas a partir de observações particulares é falaz, e o cepticismo de Hume é irrefutável para um empirista. O princípio não pode inferir-se sem circularidade (como Karl Popper também afirmou) de umas uniformidades observadas, desde que por ele se justificam essas inferências. Deve, portanto, ser — ou ser deduzido de um princípio independente e não baseado na experiência. Nesta extensão, Hume demonstrou que o empirismo puro não é base suficiente da ciência (Kant tinha razão quando dizia, mais ou menos isto, que “a nossa experiência dos sentidos está impregnada de teoria na nossa cabeça”).

Para contrariar Hume, podemos nós dizer que

a indução é princípio lógico independente, impossível de inferir da experiência ou de outros princípios lógicos, e que, sem esse princípio, a ciência é impossível.

Por isso é que “a ciência tem muitos lados”, e não existe a única ciência politicamente correcta e positivista do Carlos Fiolhais.

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