sexta-feira, 18 de outubro de 2024

O Aparente é uma manifestação intencional do Real


A professora Helena Serrão publica aqui um texto — de certa forma, Kantiano — da autoria de um tal Julian Baggini que não conheço. Guardei o texto aqui, em PDF.

O referido texto trata da problemática kantiana que envolve os conceitos de “númeno” (a “coisa em si”, ou a realidade propriamente dita), e o de “fenómeno” (aquilo que nos aparece proveniente do mundo, ou seja, as “aparências”).

O que Kant quis dizer (em termos práticos) com "coisa-em-si" — ou "coisa-em-si-mesma", a realidade propriamente dita, ou númeno — é o seguinte: o ser humano não será nunca capaz de conhecer a verdadeira natureza da matéria. Neste sentido, Baggini tem razão.

Segundo Platão, a analogia é “o mais belo de todos os nexos”, e é indispensável à ciência. Sem analogia não há ciência; e a metonímia é a forma de tradução — na linguagem (humana) — da analogia. Ora, vejamos a seguinte “analogia do sapo”:

Um batráquio só come uma mosca (que esteja ao seu alcance físico) se esta estiver em movimento: se a mosca estiver imóvel e muito próxima dele, o sapo não a vê, e por isso não a pode comer. O mundo do sapo está limitado (as “aparências” do sapo) àquilo que mexe; e tudo que está imóvel faz parte de uma realidade que é indetectável para o sapo.

Esta experiência, a das limitações ontológicas do sapo face à realidade (em si-mesma), foram demonstradas pela ciência; mas isso não significa que saibamos o que é ser um sapo: apenas sabemos que existem determinadas características comportamentais e ontológicas do sapo que se demonstraram serem verdadeiras — como é o caso de o sapo só ver a mosca em movimento.

Em 1974, o ateu Thomas Nagel escreveu um ensaio com o título: “¿Como É Ser Um Morcego?”.

Sabemos, por intermédio do experimentalismo da ciência, que os morcegos percepcionam o mundo, por exemplo, através de uma espécie de radar, em que os impulsos de ultra-sons são enviados a partir do cérebro do morcego e os respectivos ecos permitem-lhe distinguir os objectos do meio-ambiente.

Ou seja, o que nos chega (a nós, seres humanos) da realidade do morcego (e do sapo) são “aparências” que se demonstram serem verdadeiras, demonstradas por factos. Porém, Thomas Nagel chegou a uma conclusão: podemos imaginar como é a tentativa de ser (mesmo!) um morcego, mas mais nada do que isto. Podemos conceber e imaginar a nossa experiência se nos comportássemos como morcegos, mas nunca saberíamos o que é ser, de facto, um morcego. Somos obrigados pela Razão a reconhecer a existência de factos onde nunca poderemos racionalmente penetrar. Há coisas que nos são inacessíveis porque temos que observá-las a partir de fora, do exterior dessas coisas em relação às quais podemos conhecer a verdade relativa, mas não a sua verdade absoluta.

Até aqui estou de acordo com Baggini, e com Kant: a teoria da ciência moderna chegou a uma conclusão: aquilo que o ser humano percepciona da Realidade não coincide (teoreticamente) com a própria Realidade (entendida em-si-mesma), e é apenas produto do processamento de dados realizado no nosso cérebro.

Neste sentido, a ciência — e principalmente a Física — não é uma descrição da Natureza, mas sim a descrição do nosso conhecimento acerca da Natureza.

Existe, contudo e de facto, uma relação estreita entre as “aparências” que captamos (intersubjectivamente!) da Realidade (processadas pelo nosso cérebro), por um lado, e por outro lado a Realidade (em-si-mesma). Portanto, não concordo com Baggini quando este diz que este problema é exclusivamente filosófico, e não-científico — a não ser que o Baggini reduza a ciência ao Positivismo (que é o romantismo na ciência).


« ¿Acha estranho que se considere a compreensibilidade do mundo como milagre ou como mistério eterno?

Na realidade, a priori, deveria esperar-se um mundo caótico que não se pode compreender, de maneira alguma, através do pensamento. Poderia (aliás, deveria) esperar-se que o mundo se manifestasse como determinado apenas na medida em que intervimos, estabelecendo ordem. Seria uma ordem como a ordem alfabética das palavras de uma língua.

Pelo contrário, a ordem criada, por exemplo, pela teoria da gravidade, de Newton, é de uma natureza absolutamente diferente. Mesmo que os axiomas da teoria sejam formulados pelo ser humano, o sucesso de um tal empreendimento pressupõe uma ordem elevada do mundo objectivo, que, objectivamente, não se podia esperar, de maneira alguma.

Aqui está o “milagre” que se reforça cada vez mais com o desenvolvimento dos nossos conhecimentos. Aqui está o ponto fraco para os positivistas e os ateus profissionais.»

(Albert Einstein — “Worte in Zeit und Raum”)


Kant disse o mesmo, por outras palavras:

“O entendimento cria as suas leis (as leis da natureza), não a partir da Natureza, mas impõe-lhe-as.”

(Crítica da Razão Pura)


Para S. Tomás de Aquino,

“A Verdade é a adequação entre a inteligência ou espírito que concebe, por um lado, e a Realidade, por outro lado”.

Neste caso, S. Tomás de Aquino está de acordo com Einstein e com Kant. A ciência procura aprimorar e aprofundar essa “adequação tomista” entre as “aparências”, por um lado, e a Realidade, por outro lado.. Portanto, este problema das “aparências” é também um problema científico, e não somente filosófico como defende Baggini.

A própria medição científica dos fenómenos (daquilo que nos “aparece”) altera a própria Realidade em-si-mesma (númeno), por exemplo, quando a medição científica provoca o “colapso” da Função Ondulatória Quântica.

O “colapso” da Função Ondulatória Quântica, ou o colapso do vector de estado, ou o colapso de Ψ, é a transformação de algo [Ψ] que não é [total ou parcialmente] matéria (onda), porque não tem massa, em matéria ou em corpúsculos que têm massa (partícula elementar). E essa transformação, de algo que não tem massa e, por isso, não é matéria, em algo que tem massa e, por isso, é matéria — essa transformação do “númeno” em “fenómeno” é efectuada através da medição científica do fenómeno, ou pela observação de Ψ por uma consciência, que pode ser um aparelho de medição concebido por uma consciência humana ou outra.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Neste blogue não são permitidos comentários anónimos.