sábado, 11 de janeiro de 2014

O Decálogo e a ética

 

O termo “Decálogo” foi cunhado ou por Clemente de Alexandria (~ 150 – ~ 230), ou Irineu de Lião (~ 130 – ~ 202) : não se tem a certeza de qual dos dois foi o autor do termo. Existem duas versões ligeiramente diferentes do Decálogo: a do Êxodo e a do Deuteronómio. Vamos apenas fazer aqui referência ao Êxodo.

Normalmente falamos em 10 Mandamentos; mas, se virmos vem, não são 10 Mandamentos: antes, são 8 interditos (tabus) e 2 mandamentos. Vamos colocar os tabus (interditos) a vermelho:

  1. Eu sou Yahweh teu Deus, que te fiz sair da terra do Egipto, da casa dos escravos.
  2. Não terás outro Deus diante mim.
  3. Não pronunciarás o nome de Yahweh, teu Deus, em vão.
  4. Lembra-te do dia de Sábado (Sabbat) para o santificares: seis dias trabalharás e realizarás toda a sua obra, mas o sétimo dia, Sábado, descansarás para Yahweh teu Deus. Não farás nenhum trabalho, nem tu, nem o teu filho, nem a tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu rebanho, nem o estrangeiro que habita contigo (…)
  5. Honra o teu pai e tua mãe, a fim de que os teus dias se prolonguem sobre a terra que te deu Yahweh, teu Deus.
  6. Não matarás.
  7. Não cometerás adultério.
  8. Não roubarás.
  9. Não levantarás falsos testemunhos contra o teu próximo.
  10. Não cobiçarás a casa do teu próximo. Não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu burro, nem nada que lhe pertença

    (Êxodo, 20, 2-17)

Não são propriamente dez mandamentos, desde logo porque parte dos itens estão no indicativo futuro (não matarás, não roubarás, etc.), o que significa que Deus promete ao homem ajudá-lo e que este será capaz de se abster dos tabus ou interditos. Por isso, o tabu (o interdito) é libertador em si mesmo, porque basta ao homem abster-se do tabu (não agir) para respeitar a vontade de Deus; ou seja, o interdito é um mandamento negativo (é um tabu), ao passo que o mandamento propriamente dito é positivo (“Lembra-te do dia de Sábado” e “Honra o teu pai e tua mãe”). O mandamento implica um dever de agir, o tabu implica uma abstenção no agir.

No Decálogo, Yahweh fala de si na primeira pessoa do singular e dirige-se a um ouvinte único — ao indivíduo, e não a um colectivo — na segunda pessoa do singular. A lei não é dirigida a um povo, mas a cada homem na sua dignidade singular e transcendente, ou seja, para além de toda a divisão política.

Uma das características notáveis do Decálogo é o mandamento (dever) de ninguém se sujeitar ao trabalho ilimitado, e o Sábado é feito para que ninguém trabalhe (“nem o estrangeiro que habita contigo”). Perguntem a um plutocrata actual se concorda com o Decálogo e ele dirá que “isso é coisa da antiguidade”. Em termos objectivos, o Decálogo é hoje colocado em causa pelas elites.

Segundo o Decálogo, a lei e a fé estão ligadas: é respeitando a lei que o homem exprime a sua fé. Ou seja, a fé traduz-se em termos práticos no cumprimento dos mandamentos e na abstenção em relação aos tabus. Por outro lado, a lei pressupõe uma dissimetria inicial (a priori) entre o locutor (Yahweh) e o ouvinte (o indivíduo), e não pode ser considerada uma regra universal abstracta: o culto prestado a Yahweh, por um lado, e a dimensão ética da existência, por outro lado, são indissociáveis. A lei assume uma forma metapolítica — está para além da política —, concedendo à lei um conteúdo jamais ultrapassado ou ultrapassável.

Tudo isto se alterou com os profetas e o culto da imanência escatológica. Os profetas remeteram o cumprimento da lei para a subjectividade do “coração”, e não já para a exterioridade dos gestos do indivíduo. A realização do Decálogo será possível quando Yahweh abolir toda a exterioridade e toda a heteronomia, gravando a sua lei no coração dos homens: “porei a minha lei no fundo do seu ser, e escrevê-la-ei no seu coração” (Jeremias, 31 – 33). Começou aqui o “problema” ético da “moral do sentimento” do papa Francisco I, e da absolutização contemporânea da subjectividade humana do politicamente correcto.

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