segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Os tradicionalistas portugueses deveriam ler Durkheim

 

Durkheim é fraco em ética (devido à influência do Positivismo) mas muito bom em filosofia política. De uma determinada forma, o seu pensamento político identifica-se com o de Alexis de Tocqueville. Um livro de leitura obrigatória é “A Divisão Social do Trabalho” (Editorial Presença, 1977), e outro é “Solidarity” (“Solidarité”, no título original em francês), e que penso que não foi publicado em Portugal. Se não encontrarem estes livros à venda, procurem-no nos alfarrabistas de Lisboa e Porto.

Durkheim é um anti-liberal mas, simultaneamente, é contra as doutrinas que defendem o Poder do Estado. Ora, isto faz dele um “conservador” no sentido actual do termo, por um lado, e, por outro lado, vai ao encontro do pensamento político de Tocqueville. A ideia propalada por alguns esquerdistas segundo a qual Durkheim foi um socialista, é totalmente errada: podemos dizer que houve quem se aproveitasse do seu pensamento para elaborar em uma qualquer forma de socialismo teórico (por exemplo, o Solidarismo de Léon Bourgeois, foi buscar alguma coisa a Durkheim), mas o anti-liberalismo de Durkheim manifestava-se também contra o centralismo estatal que é uma característica do socialismo (e também do nacional socialismo alemão, que mais não é do que uma forma de socialismo).

A razão por que Durkheim era contra o Poder do Estado era porque ele defendia a organização da sociedade em corporações 1; e é aqui que o conservadorismo de Durkheim entronca no tradicionalismo propriamente dito — e não no “tradicionalismo corporativista fascista”, que hoje se confunde com o tradicionalismo propriamente dito, e que advoga um Estado plenipotenciário.

Durkheim reduziu o liberalismo ao absurdo. 2 

Segundo o liberalismo: o que é relevante, em termos sociais, é o acordo espontâneo dos interesses particulares (entre indivíduos entendidos como tal, por exemplo, em Spencer). Para o liberalismo [Spencer] a cooperação (entre indivíduos) era (e é, ainda hoje) entendida como convergência de vontades independentes umas das outras, e que não têm, entre si, uma relação que não seja exterior (exterioridade das relações e liberdade negativa).

Segue-se que o individualismo liberal, que se baseia no conceito de evolução social de diferenciação funcional individuante 3, obedece a uma lógica utilitarista que subordina o Todo orgânico à satisfação (“felicidade”) das partes. Ou seja, segundo o liberalismo, a existência do indivíduo para a sociedade, que existia nas sociedades até à revolução industrial, transforma-se em existência da sociedade para o indivíduo das sociedades industriais.

Durkheim denunciou esta inversão  liberal da finalidade orgânica, porque o liberalismo subordina a organização ao princípio económico da utilidade. Segundo Durkheim, da dimensão individual dos sujeitos económicos, movidos apenas pelo seu interesse próprio, não pode emergir nenhum poder regulador, mas apenas um conflito permanente que estabelece relações efémeras e instáveis. O conceito liberal de “cooperação” não pode explicar a solidariedade social — a não ser que se tome o efeito pela causa, como fazem os liberais; porque, se os indivíduos podem cooperar, celebrar contratos, fazer comércio, etc., é porque são solidários de um modo orgânico, inseridos em uma finalidade que os transcende, e que (a finalidade) toma forma com os movimentos particulares dos indivíduos. Ou seja, existe cooperação porque existe (a priori) solidariedade orgânica, e não, como dizem os liberais, que possa existir solidariedade orgânica porque existe cooperação.

emile_durkheimDurkheim constatou um facto: as sociedades modernas padecem de um mal endémico que consiste na dificuldade em tornar efectivo o princípio regulador da organicidade. Por outras palavras, quando as relações económicas tendem a absorver, cada vez mais e em crescendo, as relações sociais, a sociedade torna-se “mecânica” em vez de ser “orgânica”. O erro do liberalismo é o de ter atribuído um valor normativo àquilo que não passa de uma anomalia e de um desregramento, erro esse justificado por uma espécie de patologia que resulta de uma dessocialização da economia que é abandonada ao caos das “guerras” individuais. Nestas condições de dessocialização da economia, a divisão do trabalho é desfigurada: deixa de ser uma função social para passar a ser um conjunto de interesses em luta, e de onde nenhuma forma de solidariedade pode surgir.

Por outro lado, e contra o socialismo, Durkheim defende a ideia segundo a qual o papel do Estado não é o de criar a unidade (social) 4; em vez disso, o papel do Estado é o de facilitar a consciência clara da solidariedade dos órgãos (sociais) e que cada um dos órgãos se reveja em uma representação superior a eles, mas que se realiza através deles. Ou seja: Durkheim é um anti-liberal mas, simultaneamente, é contra as doutrinas que defendem um do Poder desproporcionado do Estado.

O Estado é uma espécie de “função intelectual” do corpo mecânico, e é o lugar onde a unidade do corpo social toma consciência de si própria. Mas a autonomia do Estado é limitada, porque é fundada mais no pensamento do que na acção. Durkheim inverte o pan-optismo de Bentham: o Estado está no “centro”, onde cada um pode vê-lo qualquer que seja a posição que ocupe na totalidade unificada do corpo social de que faz parte. E é devida a esta visibilidade múltipla e transparente do Estado que este desempenha um papel unificador.

Mas, para que o Estado e a sociedade funcionem, é necessário que os órgãos (sociais), na sua diversidade, participem na unificação do Todo. O poder regulador traduz-se na cooperação de diferentes actividades reguladas em si mesmas, porque a centralização estatal não é separável dos corpos intermédios que têm, em si mesmos, uma normatividade específica.

As corporações não são meras associações de interesses, mas antes são individualidades morais: a sua função é regular as acções dos indivíduos e integrá-las na totalidade social onde só aí fazem sentido. As corporações são subordinadas ao Estado, mas não são dirigidas pelo Estado — porque o fundamento da corporação reside em uma função específica inerente a ela própria, e só a ela, e, por isso, cada corporação deve conceber a disciplina adequada para si própria.

Quando a corporação cria um código de regras específico, a que o indivíduo que exerça determinada função está submetido, ela faz ressurgir as forças colectivas ao próprio nível das consciências individualizadas pela divisão do trabalho. E através da solidariedade orgânica, as forças sociais formam uma nova configuração que orienta a sociedade de forma diferente e distribui de outro modo.

Se o Estado é o lugar onde reside a consciência colectiva propriamente dita, as representações que o Estado elabora a nível central não teriam efeito nas consciências individuais se estas últimas não estivessem socializadas a nível periférico. Assim, conclui Durkheim, a solidariedade orgânica substitui, por um fenómeno de concentração, a disseminação da consciência colectiva que se verificava na solidariedade mecânica (liberal), mas esta concentração é inseparável de uma diferenciação das próprias representações colectivas.

Em suma: num tempo em que o socialismo morreu e o liberalismo é factor evidente de desregramento social e desregulação económica, Durkheim deveria estar na moda. E os tradicionalistas portugueses, em vez de citarem personalidades fascizantes e mesmo doentias do Integralismo Lusitano, deveriam concentra-se mais em Durkheim e em Tocqueville (e um pouco de Russell Kirk).


Notas
1. Durkheim não considerava, por exemplo, os sindicatos modernos como sendo corporações propriamente ditas
2. Quando se fala aqui em “liberalismo”, pretende-se sempre dizer “liberalismo económico”.
3. Segundo Spencer, todo o fenómeno passa de uma “homogeneidade indefinida e incoerente, para uma heterogeneidade definida e coerente” (First Principles, 1862)
4. O que seria, nesse caso, fazer da esfera política uma nova transcendência (como acontece com as ideologias políticas modernas) e fazer com que se perdesse, de facto, o sentido da regulação orgânica.

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