terça-feira, 26 de agosto de 2014

O problema de fundo do actual capitalismo

 

Leio este artigo no blogue Blasfémias:

“Com este governo, esta maioria e, sobretudo, estas pessoas, não vamos lá: o défice voltou a entrar em descontrolo e adivinha-se novo aumento de impostos.

Por razões próprias e alheias, este governo não fez as reformas que tinha que fazer para domar a despesa pública, isto é, para atacar as causas profundas do défice. Pelo contrário, convenceu-se o governo de que o nível da despesa pública até poderia ser mantido ou baixar pouco («vamos manter o estado social», não cansaram de proclamar os seus dirigentes), caso os impostos aumentassem e as exportações também, fórmula mágica que dificilmente se consegue manter por muito tempo, porque explica o bom senso que nenhuma economia se desenvolve se não conseguir aforrar e investir. Um erro de amadores, portanto.”

E leio estoutro:

“As a result of Obamacare Medicaid expansion coupled with means-tested Obamacare assistance, I estimate welfare rolls expanded from 35.4% of the population in 2012 to about 40% in 2014.”

Almost Half of America on Welfare

Cerca de metade da população americana já vive do Estado Social. Portanto, o problema não existe só em Portugal. E isto leva-me a um texto de Kant, escrito poucos anos antes de ele morrer [“Teoria e Prática”, 1793]:

“Um governo que fosse fundado sobre o princípio da benevolência para com o povo — tal o do pai para com os seus filhos, quer dizer, um governo paternal —, onde, por consequência, os sujeitos, tais filhos menores, incapazes de decidir acerca do que lhes é verdadeiramente útil ou nocivo, são obrigados a comportar-se de um modo unicamente passivo, a fim de esperar, apenas do juízo do chefe do Estado, a maneira como devem ser felizes, e unicamente da sua bondade que ele o queira igualmente — um tal governo, digo, é o maior despotismo que se pode conceber.”

Aquilo que o blogue Blasfémias talvez não tenha compreendido é o facto de ser a própria plutocracia — ou seja, o capitalismo actual — que apoia e incentiva o Estado Social: basta verificarmos as posições políticas da maioria dos 50 mais ricos do mundo, incluindo Bill Gates, Rockefeller ou Rothschild. A ideia da actual plutocracia é a criação do “maior despotismo que se pode conceber”. É a isto que Adriano Moreira chama de “neoliberalismo repressivo”, em que a solidariedade cristã do capitalismo primordial é substituída por um capitalismo instrumental e utilitarista que, em troca do Estado Social, restringe a liberdade da pessoa.

A criação do “maior despotismo que se pode conceber” leva-nos ao conceito de sinificação: de uma forma paradoxal e até irracional, a China passou o sistema ideal para a plutocracia (ver, por exemplo, a opinião de Henry Kissinger acerca da China). Ou seja, não foi o capitalismo, em si mesmo, que falhou: foi a elite capitalista — a actual plutocracia — que perdeu as referências fundamentais e fundacionais do capitalismo. A desregulação do capitalismo (neoliberalismo) conduz ao “maior despotismo que se pode conceber”, porque concede aos plutocratas um poder que desfaz fronteiras, impõe coercivamente políticas nacionais que contraditam com as culturas locais, legitima intervenções militares em países estrangeiros e de uma forma discricionária.

Que ninguém pense que as políticas de Obama não receberam a aquiescência dos mais ricos do mundo. Quando Obama se recandidatou a presidente dos Estados Unidos, uma das herdeiras da família Rothschild foi contra o candidato conservador católico, e a favor de Obama, afirmando nos jornais que “o futuro presidente deve pertencer ao centro político”. À medida que o “centro” se vai radicalizando e virando à esquerda, a plutocracia continua a defender o “centro”, porque a intenção é a materialização política do “maior despotismo que se pode conceber”.


Pessoas como Passos Coelho já não têm a noção dos fundamentos do capitalismo: o capitalismo é hoje concebido como “o direito individualista a ser rico” — o capitalismo já perdeu as referências culturais e sociais que o fundaram. Com a passagem do tempo, as ideias entram em entropia se não houver um reavivar cultural permanente dessas ideias.

É o que acontece, por exemplo, com Fátima Bonifácio quando escreve que “é uma condição muito solitária, a do liberal deixado frente a frente com as suas dúvidas e angústias, sem poder refugiar-se na invocação de uma Autoridade, divina ou terrena, apenas entregue à racionalidade dos seus argumentos.”

Esta ideia do “liberal que não pode invocar nenhuma autoridade e que está entregue exclusivamente à racionalidade dos seus argumentos” — não é genuinamente liberal (século XVIII e século XIX): em vez disso, é uma ideia de “liberalismo” prostituída pela esquerda, por um lado, e por outro lado é uma ideia de um liberalismo anti-social. Esta gente não tem uma cultura de direita: foi educada na esquerda depois do 25 de Abril de 1974, e passou-se para a direita em função de regalias, privilégios e prebendas, e de princípios alienados em relação ao capitalismo. Esta gente não é liberal: serve-se de um conceito abstracto de “liberalismo” para defender os seus direitos sociais adquiridos.

A autoridade não pode ser fundada mediante a instituição do “maior despotismo que se pode conceber”.

Quem pensa — como os liberais económicos portugueses pensam, em juízo universal — que “a autoridade está entregue exclusivamente à racionalidade dos seus argumentos”, não percebe como foi fundado o capitalismo, desde os calvinistas suíços, passando pelos fisiocratas franceses Jansenistas, até à escola escocesa de finais do século XVIII e princípios do século XIX.

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