quarta-feira, 26 de novembro de 2014

As causas primevas da letargia do povo português

 

“Como é que os portugueses passaram de um povo guerreiro que em tempos se destacou pela tenacidade com que empreenderam a Reconquista e posteriormente a fantástica epopeia dos Descobrimentos, para um povo que arrisco chamar de letárgico, é coisa que não consigo compreender e sinceramente duvido que alguém seja capaz de tal.”

A Podridão do Regime

Uma resposta parcial pode ser encontrada em Maquiavel (não gosto dele, mas por vezes ele tinha razão). Outra razão foi a eliminação da diferença cultural hierarquizada. E, finalmente, a decadência das elites a partir de metade do século XVI que fez descambar Portugal para o domínio da Espanha dos Filipes.

Estas três componentes, digamos assim, devem ser vistas em conjunto, ou seja, estão interligadas e coincidiram fatidicamente as três em um espaço de tempo inferior a 100 anos: foi quanto bastou para a “letargia” de Portugal, que só foi mitigada no tempo através do apoio político e militar de Inglaterra.

Vamos a Maquiavel.

Nas suas Cartas, Maquiavel criticou o “otium” (lazer, inacção, ócio), porque, segundo ele, o ócio corrompe. Enquanto que para Petrarca e os filósofos do seu tempo, o lazer permitiria o regresso da pessoa a si própria, Maquiavel via no lazer a condição da dissolução do compromisso civil. Petrarca argumentava que poderia existir um ócio activo (“otium negotiosum”), mas Maquiavel afirmava que era tudo a mesma coisa: ócio é ócio, e nada mais do que isso.

Dizia Maquiavel que “as letras seguem as armas”, e que, “nas cidades, os capitães aparecem à frente dos filósofos”; “o poder de homens de armas não se pode corromper mais honradamente do que pela prática das letras, nem a ociosidade instalar-se na cidade de maneira mais pérfida e perigosa”. Isto foi o que aconteceu em Portugal até meados do século XVI, em que, por exemplo, o poeta Luiz de Camões seguiu a saga e a acção dos capitães dos Reino, e não o contrário disto. Até 1550, sensivelmente, os poetas e filósofos portugueses seguiam as armas; o regime político de antanho era “anti-ócio”.

Dizia Maquiavel que o lazer intelectual é ocioso, porque, alegadamente e segundo ele, nasceu da paz e nela se instalou criando a ilusão de ter toda a razão de ser nela própria: erradamente pensa-se, então, que bastaria amar a paz para ter a paz, o que faz com que se transforme o repouso, conquistado pelas armas, na ociosidade que faz baixar as armas e leva à extinção da virtude guerreira.

Por isso, diz Maquiavel, é preciso imitar Catão, que vendo a juventude romana afeiçoar-se a filósofos gregos Diógenes e Carnéades, “e sabendo o mal que tão honesta ociosidade podia trazer à pátria”, “tudo fez para que nenhum filósofo pudesse ser recebido em Roma”.

Portugal, até meados do século XVI, esteve praticamente fechado a influências ideológicas externas e, portanto, quase imune a qualquer tipo de desnacionalização (com excepção da influência dos reis católicos de Espanha), por um lado, e de contágio ideológico corruptor, por outro lado.

Maquiavel também se refere à localização geográfica onde vive um determinado povo. ¿Qual será o melhor local? — pergunta Maquiavel: ¿será preferível um local fértil ou um local estéril?

“Os homens agem por necessidade ou por opção (…) e daí que haja mais virtude onde a escolha é menos livre” — diz Maquiavel. A vantagem de um país menos rico em recursos é, em primeiro lugar, a de obrigar os homens a serem industriosos e menos preguiçosos, e a reforçar a sua unidade interna. Ao reforçar a concórdia interna, a necessidade satisfaz, então, a primeira condição da segurança da comunidade ou da nação. Porém, e para além dessa segurança interna, é necessário (segundo Maquiavel) ter capacidade de resistência às agressões externas, e por isso há que expandir o território através da criação de colónias, criando riqueza para aumentar o poder defensivo. Mas a criação de colónias apresenta o inconveniente de introduzir o ócio que ameaça a unidade dos cidadãos...

Para Maquiavel, o lazer adormece a consciência dos cidadãos em relação aos perigos latentes e faz perder as energias comunais, por um lado, e por outro lado contribui para o aumento exacerbado das ambições particulares que são sintoma de corrupção pública. Lazer e desunião são correlativos.

“As causas das desunião das repúblicas não são as mais das vezes a ociosidade e a paz; as causas da união, pelo contrário, são o medo e a guerra. Se, portanto, os habitantes de Véiès — que não cessaram de ofender os romanos com ataques e insultos — tinham sido sábios, mais o foram quando vendo Roma desunida, desviaram o pensamento da guerra e procuraram oprimir os romanos com a arte da paz”.

Quando a elite portuguesa (nobreza e o clero) da primeira metade do século XVI se apresentou desunida, foi oprimida pela “arte da paz” da potência espanhola.

Por fim, temos a eliminação da diferença cultural hierarquizada. Karl Popper chama à atenção para o facto de as civilizações surgirem em territórios onde existem diferenças culturais que coabitam, mas em que essas diferenças estão sujeitas a uma hierarquia de valor — as culturas coabitantes não são consideradas iguais entre si, mas antes há uma cultura que é preponderante e mais valorizada do que outras, ou seja, a antítese do actual multiculturalismo.

Com a perseguição aos moçárabes, e principalmente com a expulsão dos judeus a partir de D. Manuel I, Portugal deixou de ser uma sociedade em que existia uma diferença cultural hierarquizada.

3 comentários:

  1. Ainda há quarenta anos, os portugueses conseguiam manter uma guerra - pense-se o que se pense dela… - em três frentes distintas, com sucesso não despiciendo. Estavam portanto muito longe ser cobardes ou letárgicos. O que se passou entretanto? Diria o Camões por si referido: fraco rei faz fraca a forte gente; e fraco rei é o que temos tido nestes últimos quarenta anos, um rei cuja legitimidade primeira assenta na forma nada airosa como se pôs cobro àquela guerra e ao que através dela se defendia…

    Outrossim, neste período de tempo, há também que contar, por um lado, com a implosão deliberada da influência da Igreja e da Família, primeiras guardiãs e transmitentes dos valores ético-morais que faziam fortes os portugueses; por outro lado, com a ascensão de um magistério antinacional e de substituição exercido por uma comunicação social deletéria e às ordens dos lóbis jacobino e mundialista que promoveram a implosão das duas entidades já referidas, comunicação social essa que formata e anestesia no pior dos sentidos possíveis (o da revolta contra a lei natural), numa lavagem cerebral brutal, cruel e sem escrúpulos, as mentes de todos os portugueses, principalmente os das gerações mais jovens (aquelas que pouco ou nada se lembram de antes de 1974 ou até de antes de 1985, e que constituirão hoje perto de 50% do total da população nacional).

    Claro que estas tendências destrutivas já estavam presentes na sociedade portuguesa muito antes de 1974, mas eram então compartilhadas por restritas minorias urbanas bem definidas, enquanto agora se elevaram a quase padrão comum de (i)moralidade. Fácil é, pois, de concluir onde residem as causas - causa últimas, que as primevas são mais complicadas… - da letargia aludida no texto que ora se comenta.

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    1. O Estado Novo foi (também) uma tentativa de contrariar uma tendência que se vinha manifestando desde do século XVI.

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  2. Obrigado pelo contributo.

    Divulguei:

    http://historiamaximus.blogspot.pt/2014/12/as-causas-primevas-da-letargia-do-povo.html

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