quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

A falácia ad Verecundiam e a burrice do Rolando Almeida

 

burro com oculos 300 web“Um dos erros mais elementares consiste em pensar que uma pessoa ou é religiosa e por isso espiritual ou não é religiosa e por isso pouco ou nada espiritual. Na verdade uma pessoa pode ser religiosa e muito pouco espiritual (mesmo pensando que é profundamente espiritual) e pode ser não religiosa e profundamente espiritual. Isto porque a dimensão espiritual não é uma propriedade exclusiva das religiões nem das crenças religiosas.

Edward O. Wilson é talvez o biólogo vivo mais respeitado no mundo e professor emérito da Universidade de Harvard, com um currículo de mais de 100 prestigiados prémios.”

Ciência, espiritualidade e humanidades, por Rolando Almeida


1/ o Rolando Almeida fala em “espiritual” sem que se saiba o que se pretende dizer com “espiritual”. Por exemplo: uma pessoa que gosta de música clássica ¿é, só por esse facto, “espiritual”? ¿O que significa “espiritual”?

Espiritual vem do latim spiritus, que significa “sopro”. Em filosofia (vamos deixar a teologia de parte!), o espírito é aquilo que se opõe à natureza e à matéria; é um princípio imaterial que é considerado primordial na escala da essência e do conhecimento.
Segundo Hegel, o espírito é o princípio racional que anima a História; e o Espírito Absoluto — segundo Hegel — é o espírito que alcançou a sua verdade ou a sua realização absoluta através da mediação da arte, da religião e da filosofia. Portanto, até Hegel, que defende um monismo, alia necessariamente a religião ao espírito.

2/ não é possível ser-se “espiritual” sem se ser religioso; o que pode acontecer é que a religião seja diferente do Cristianismo. Por exemplo, os aborígenes australianos têm a sua própria espiritualidade  mediante uma religião que pouco tem a ver com o Cristianismo; mas não deixam de ser religiosos. O próprio marxismo é uma forma de religião (religião política).

O que o Rolando Almeida pode defender é a tese segundo a qual a religião dos aborígenes australianos é tão boa (ou até melhor) do que o Cristianismo; mas não pode dizer que os aborígenes australianos são “espirituais sem religião”: no primeiro caso seria um relativista; no segundo caso é burro.

Então, pergunta-se: ¿o ateu é religioso? Se o ateu for materialista, o que acontece na esmagadora maioria dos casos, esse materialismo é também uma forma de religião (é uma crença) — se bem que uma religião anacrónica, porque a física mais recente (quântica) destruiu completamente uma visão materialista do mundo.

Se o ateu não for materialista (o que é um contra-senso), então é de facto um agnóstico. O agnosticismo é a recusa de se pronunciar sobre a existência ou não existência de Deus. Mas nada impede que um agnóstico abrace a religião budista, por exemplo, porque esta religião não é monoteísta nem politeísta (não existe a figura de Deus, no Budismo).

Qualquer ser humano dito “não-religioso” constrói a sua vida de uma maneira religiosa; por exemplo, assume dogmas inconfessáveis e íntimos, que não são publicamente assumidos; organiza os seus tempos sagrados (por exemplo, uma reunião no partido político em que milita) e os seus tempos profanos.

Essa maneira religiosa que todo o ser humano necessita para se construir a si próprio, chama-se “religiosidade”. A diferença principal entre a religiosidade, por um lado, e a religião propriamente dita, por outro  lado, é que esta última é profundamente intersubjectiva (e, por isso, objectiva), ao passo que a religiosidade endógena ao ser humano é essencialmente subjectiva.

3/ a ideia segundo a qual “as crenças religiosas não passam de crenças”, também é uma crença. É uma pena que o Estado tenha gasto dinheiro com o Rolando Almeida para ele tirar um curso de filosofia que não serviu de nada a ele e aos seus alunos.

4/ quando o Rolando Almeida utiliza a opinião de um biólogo para fundamentar uma qualquer posição em matéria de religião ou de filosofia (metafísica), incorre em uma falácia ad Verecundiam.

5/ Pretende-se, com a citação do biólogo, criar um Ersatz da religião que seria a própria ciência; ou seja, a ciência passaria a ser uma religião.

"Uma das bases da força da ciência são as ligações feitas não apenas de várias maneiras dentro da física, química e biologia, mas também entre estas disciplinas primárias. Uma grande pergunta continua por responder na ciência e na filosofia. É a seguinte: pode esta consiliência (ligações feitas entre domínios bastante afastados do conhecimento) ser alargada às ciências sociais e às humanidades e até mesmo às artes criativas?

Eu penso que pode a acredito ainda que a tentativa para fazer essas ligações será uma parte fundamental da vida intelectual do século XXI. Porque é que eu e outras pessoas pensamos desta maneira tão controversa? Porque a ciência é a fonte da civilização moderna. Não é apenas «outra maneira de saber», comparável à religião ou à meditação transcendental. Não reduz o génio das humanidades, nem mesmo das artes criativas. Pelo contrário, propicia o enriquecimento do seu conteúdo.

O método científico tem explicado a origem e o significado da humanidade de uma maneira mais consistente e melhor do que as crenças religiosas. As histórias da criação das religiões organizadas, tal como a ciência, propõem-se explicar a origem do mundo, o conteúdo da esfera celeste e até mesmo a natureza do tempo e do espaço. Na sua grande maioria, os relatos míticos, baseados nos sonhos e nas epifanias dos antigos profetas, variam entre as crenças religiosas. São atractivos e reconfortantes para as mentes dos crentes, mas cada um deles contradiz a outro e, depois de testados no mundo real, tem-se sempre verificado que estão errados, sempre errados.”

6/ Mas o Rolando Almeida (e o biólogo) dizem simultaneamente “que sim” e “que não”: que não, que a ciência é diferente da religião e que não é uma crença; que sim, que a ciência pode substituir a religião.

Esta posição tem a ver com o problema moral: a religião — qualquer que seja —  não é neutra moralmente, e a ciência é, ou deveria ser por princípio, neutra moralmente. Ou seja, o Rolando Almeida e o biólogo acreditam ser possível a assunção ou o surgimento de uma religião moralmente neutral.

7/ ¿Pode a ciência fundamentar a moral?

A ética e a moral não podem ser definidas ou determinadas pela ciência.

A ideia de responsabilidade moral reside na experiência subjectiva, enquanto que a ciência só concebe acções determinadas pelas leis da natureza, e não concebe autonomia, nem sujeito, nem consciência e nem responsabilidade. A noção de “responsabilidade” é não-científica. A ética e a moral pertencem ao domínio da metafísica que se caracteriza pela falta de “bases objectivas” — aqui entendidas no sentido naturalista [naturalismo ≡  cientificismo metodológico].

Para tentar contornar esta realidade objectiva e insofismável que consiste no facto de a ciência não poder determinar a ética, a ciência transformou-se, ela própria, em uma forma de metafísica pura (em uma religião), para assim poder obter a legitimidade para opinar sobre a ética e sobre a moral. É assim que surgem as “teorias científicas” não refutáveis na sua essência, como por exemplo, a teoria do Multiverso, ou as teorias evolucionistas em geral [por exemplo, a teoria do epifenomenalismo de Thomas Huxley, que ainda hoje subsiste entre os darwinistas, evolucionistas e naturalistas].

Na medida em que 1) o cientista deve procurar a objectividade; 2) em que a objectividade requer um despojamento de valores; 3) e em que o cientista é um sujeito [um ser humano] e a comunidade científica é composta por seres humanos [sujeitos] — a ciência [e sobretudo as ciências sociais] só muito raramente consegue libertar-se das valorações [éticas] da sua própria camada social, de modo a poder estabelecer uma independência valorativa e objectiva.

Em consequência, surgiu no século XX um fenómeno massivo de “liquidação do sujeito”, imposto por uma elite cientificista, e que se traduziu na emergência das religiões políticas totalitárias [por exemplo, o eugenismo característico dos “progressistas”, evolucionistas e socialistas; o nazismo e o comunismo]. Este processo cientificista de “liquidação do sujeito” levou a uma dissociação mental extrema na comunidade científica (a oposição entre ciência propriamente dita, e o cientismo), e a uma pulverização dos valores da ética e da moral.

8/ É pena que eu tenha este trabalho todo para dar lições a um professor de filosofia.

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