terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

A utopia revolucionária da imanência do paraíso na Terra

 


Temos aqui um texto de Eugénio de Andrade. O Júlio Machado Vaz, que cita o texto do Eugénio de Andrade, identifica-se obviamente com ele.

É sempre problemático quando os poetas filosofam, porque a poesia é filosofia desprovida de lógica. O texto é uma crítica à modernidade, mas trata-se de uma crítica que se baseia na utopia do Romantismo que se seguiu ao Iluminismo — utopia essa que ainda hoje persiste — e que concebia a possibilidade da alteração da natureza humana tendo em vista a construção de um paraíso na terra: a imanentização laica do Escathos que caracteriza a mente revolucionária (resquícios culturais de um certo Cristianismo milenarista). As engenharias sociais ("casamento" gay, adopção de crianças por pares de invertidos, ideologia de género, igualitarismo politicamente correcto, a negação das diferenças, etc.) que verificamos actualmente nada mais são do que a persistência na utopia que torna imanente o paraíso na Terra.

Com o advento da modernidade, a natureza humana não mudou. O que mudou foi a cultura. Mas a ideia segundo a qual,  mudando-se a cultura, o Homem (em termos colectivos) progride — como se o progresso fosse uma lei da Natureza —, revelou-se também ela utópica. Não podemos ter sol na eira e chuva no nabal. O utilitarismo que caracteriza o nosso tempo é cultural, e foi-nos imposto pelas elites desde o tempo em que Bentham recuperou o epicurismo que tinha estado adormecido durante 17 séculos. Vivemos em uma sociedade epicurista (não confundir “epicurismo” e “hedonismo”) em que, tal como acontecia na Grécia antiga, os epicuristas vivem (alegoricamente) fora dos muros da cidade. O epicurismo ético — o utilitarismo — alastrou-se de tal forma que a maior parte das pessoas vive “fora da cidade”, embora estando dentro da cidade.

Eugénio de Andrade fala em “privilégios de uns poucos”. Sempre existiram “privilégios de uns poucos”, desde que surgiu o ser humano. A natureza humana não mudou nem mudará nunca. É utopia pensar que um dia destes não haverá privilégios de uns poucos, a não ser que quem lute contra os privilégios sejam aqueles que os não têm e que se acham habilitados para os ter; e que, para os ter, pensem que é preciso adequar a cultura antropológica de forma tal que os privilégios lhes sejam concedidos.

A diferença é que, antes da modernidade, os privilégios podiam ser retirados a qualquer momento, em função dos interesses da comunidade. Esta cultura de precariedade dos privilégios foi interrompida com o absolutismo monárquico e com a teoria da Razão de Estado. Foi com o absolutismo monárquico (revolução inglesa) que se iniciou um ciclo revolucionário infernal e perpétuo, que dura até hoje. A mentalidade de Eugénio de Andrade e de Júlio Machado Vaz não se distinguem grande coisa —  na essência, embora não na substância — de um calvinista Quaker da Inglaterra de Cromwell: a mente revolucionária mantém-se essencialmente idêntica.


O pessimismo de Eugénio de Andrade é semelhante ao pessimismo de Heidegger e dos existencialistas do século XX: é um pessimismo crédulo, semelhante ao pessimismo de Joaquim de Fiore que, já no século XI, anunciava a Era do Espírito Santo, depois da Era do Pai e a do Filho. É um pessimismo que não enxerga a cultura em que se baseia, que olha para o futuro como lenitivo para os males do presente — como se fosse possível erradicar o mal da condição humana.

« Quando o coração é sensível e o espírito contundente, basta lançar um olhar sobre o mundo para ver a miséria da criatura e pressentir as vias da redenção; se são insensíveis e embotados, serão necessárias perturbações maciças para desencadear sensações fracas.

É assim que um príncipe mimado se apercebeu pela primeira vez de um mendigo, de um doente e de um morto ― e tornou-se assim em Buda; em contrapartida, um escritor contemporâneo vive a experiência de montanhas de cadáveres e do horroroso aniquilamento de milhares de indivíduos nas conturbações do pós-guerra na Rússia ― e conclui que o mundo não está em ordem e tira daí uma série de romances muito comedidos.

Um, vê no sofrimento a essência do ser e procura uma libertação no fundamento do mundo; o outro, vê-a como uma situação de infelicidade à qual se pode, e deve, remediar activamente. Tal alma sentir-se-á mais fortemente interpelada pela imperfeição do mundo, enquanto a outra sê-lo-á pelo esplendor da criação.

Um, só vive o além como verdadeiro se ele se apresentar com brilho e com grande barulho, com a violência e o pavor de um poder superior sob a forma de uma pessoa soberana e de uma organização; para o outro, o rosto e os gestos de cada homem são transparentes e deixam transparecer nele a solidão de Deus. »

(Eric Voegelin)

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