quarta-feira, 1 de junho de 2016

O Bem Soberano e a virtude moral

 

Eu vou comentar um outro textículo do Luís Laparoto, porque ele próprio colocou a ligação, à laia de comentário, do meu mural do FaceBook; ou eu apagava o comentário, ou comento. Vou comentar.

“Debater um tema aparentemente tão exaurido quanto o da "adopção gay" parece inútil, não fosse o mesmo remeter para uma divisão profunda, bipolar, que fractura a Ética e explica, em parte, a celeuma existente entre "conservadores" e "libertários".”

A adopção de crianças por pares de invertidos tem pouco a ver com “libertarismo”; tem sobretudo a ver com o chamado “marxismo cultural” da Escola de Frankfurt. O que pode acontecer — e muitas vezes acontece — é que os verdadeiros libertários sejam os idiotas úteis, assim como os anarquistas russos do princípio do século XX foram os idiotas úteis de Lenine.

A adopção de crianças por pares de invertidos não é só apenas uma questão de ética: é também uma questão cultural (cultura antropológica).

“O dogma que cria a renitência relativamente à adopção homo-parental é o mesmo que demoniza, patologiza, a homossexualidade: ele é "psicanalítico", não é partilhado por toda a ciência "psicológica" (ou mesmo por parte da psicanálise contemporânea), e prolonga um tipo de moral paternalista, que coloca o fulcro ético na imagem do homem/pai e "diaboliza" o feminino, assim como o que este representa. Sabemos que a psicanálise contrapôs a grande parte da repressão devida e criada pela moral conservadora, muito associada ao ideal platónico-cristão, mas também é vero que o mesmo método cimentou a visão do equilíbrio bi-parental centrado particularmente na representação masculina enquanto gerador de saúde mental e da plena diferenciação do filho.”

foi cesarianaA psicanálise não faz parte da ciência, porque não é falsificável (Karl Popper); é estranho que o Laparoto, que, segundo parece, estudou medicina, não saiba que não pode invocar a psicanálise em contexto científico. Portanto, caro leitor, quando você ouvir um douto qualquer invocar a autoridade de direito científica da psicanálise, mande-o à merda! (e pode dizer que vai da minha parte).

O marxismo cultural é uma espécie de mistura explosiva e altamente corrosiva — do ponto de vista da cultura antropológica — entre a teoria da luta de classes sociais de Karl Marx, a psicanálise de Freud, e o niilismo de Nietzsche.

O que a Escola de Frankfurt fez foi introduzir a psicanálise na Teoria Crítica, de forma enviesada: de Marcuse herdamos a manipulação e enviesamento da teoria freudiana do conceito de “repressão do instinto” humano por parte da civilização cristã europeia (sic), transformando a repressão do instinto na justificação e argumentação a favor do sexo livre de restrições morais — mas Marcuse separou este conceito [o de “repressão do instinto”, segundo Freud] da sua função positiva que, segundo Freud, esta repressão exerce, através do Superego, tanto na eclosão e evolução de uma civilização, como na formação da personalidade humana normal.

É neste contexto do marxismo cultural — e não do “libertarismo!”; o libertarismo não invoca Freud! — que o Laparoto “arrota postas de pescada”.

Por outro lado, não consigo perceber por que razão alguém que defenda que uma criança deve ter presente, em sua casa, as representações parentais feminina e masculina (a mãe e o pai), acabe, dessa forma e por esta via, por “diabolizar o feminino”. Pelo contrário, ao valorizarmos as funções feminina e masculina na criação e educação da criança, não diabolizamos nem o homem nem a mulher. Aquele discurso não faz sentido.

“Se, acaso, a representação feminina possuísse maior pendor, poderia soçobrar a identificação do filho com o pai (ou da filha com uma mãe hipoteticamente dominante e intrusiva), em substituição pela possível fixação edipiana, gorando-se, assim, a saúde mental em primor da fobia maior do cânone psicanalítico: o incesto (simbólico). O dogma da bi-parentalidade, do equilíbrio dual, é, correntemente, sobretudo um dogma psicanalítico, e, por meio do que ele implica em termos das relações familiares, pôde a psicanálise contribuir para se cristalizarem representações de "normal" vs. "patológico" que foram facilmente entrosadas por uma sociedade já dominantemente machista e heterossexual. Nesta sociedade paternalista, de resto imperante desde há milénios, a homossexualidade é encarada enquanto "anormal" e a adopção gay não é geralmente aceite.”

Como dissemos acima, a psicanálise não é parte da ciência; mas, no entanto, o Laparoto continua a invocar a psicanálise em um contexto “científico”. O princípio, de que parte o raciocínio, está errado; e portanto a teoria está errada (Aristóteles).

Mas repare-se na linguagem, por exemplo, em “dogma da bi-parentalidade”: segundo o Laparoto, a união de dois gâmetas diferenciados que geram uma criança, é “dogma”. O problema esquerdistas é que acreditam que maleabilidade humana é praticamente infinita; e depois, um dia, acordam com uma verdadeira (que não a deles!) revolução nas ruas. Exactamente por que é necessária a união de dois gâmetas diferentes para gerar uma criança é que a chamada “bi-parentalidade” não é dogma — a não ser que a Natureza seja dogmática.

Por outro lado, na Grécia antiga, e principalmente em Atenas (mas também, em menor grau, em Esparta), a sociedade era fortemente patriarcal (ou “sociedade paternalista”, como diz o Laparoto) e a homossexualidade era aceite (não era assim tão “anormal” quanto se possa pensar); mas a adopção de crianças por pares de invertidos não era assunto de qualquer cogitação política. Em Esparta (como na Alemanha nazi), acontecia um caso curioso: era mais ou menos vulgar que um jovem soldado espartano (púbere) tivesse um amigo mais velho — soldado veterano — que lhe ia ao cu, e que se responsabilizava pela sua segurança na batalha: era uma espécie de “adopção”; mas não propriamente de uma criança.

“E se o contexto maioritário figurasse homo-erótico? Para alguns seria a normal evolução perante a crescente efeminização da sociedade, sobretudo porque engrandeceria a representação feminina das famílias, aumentando a probabilidade de se "criarem" filhos homossexuais. Mas, agora, a pergunta fulcral: se tal constituísse a situação maioritária, a "normalidade", faria sentido falar em trauma, em patologia?”

O anormal e o normal são medidos pela curva de gauss que reflecte as tendências naturais do ser humano, por um lado, e as tendências culturais de uma determinada sociedade, por outro lado — porque o ser humano é (não só, mas também) Natureza e Cultura. Mas nunca poderemos, jamais, separar totalmente a Cultura, da Natureza, nem poderemos extirpar a Natureza, da cultura antropológica. Natureza e cultura antropológica estão e estarão sempre ligadas, mesmo sob um cruel totalitarismo.

Portanto, esta ideia do Laparoto (a do medo da “homossexualização” da sociedade) é uma falsa questão, um “espantalho”. Ninguém, com dois dedos de testa, pode dizer que esse fosse um argumento válido contra adopção de crianças por pares de invertidos. O problema coloca-se a nível ético (a educação daquela criança), e de um confronto de valores entre uma sociedade matriarcal (que Engels defendeu) e uma sociedade patriarcal.

Ao longo da História, nenhuma sociedade matriarcal construiu uma civilização e nunca se soube defender de agressões externas.

“Enquanto relativista radical que sou acredito que todas as morais possuem igual direito (não deixando, assim de acusar certa "moralidade"... igualitária) a existir. Não existem verdadeiramente Valores universais, existe - sim - transformação, e esta deve ocorrer porque todos possuem o direito de ser simultaneamente "normais" e "patológicos", "adaptados" e "inadaptados".”

O Laparoto pode defender as ideias que quiser — o que não significa que tenha razão: há muitos malucos, por aí (principalmente no Bloco de Esquerda) a escrever as coisas mais estapafúrdias. A propósito, vou falar aqui um pouco de Kant e dos conceitos de “felicidade” e de “virtude moral”.


Muitos "católicos fervorosos" são contra Kant porque, alegadamente, ele defendeu o ateísmo. Nada mais falso. Kant assumiu, como sua, a ideia de “Bem Soberano”, que já vinha da antiguidade grega: o Bem Soberano é o “fim último” que deve ser procurado pelo ser humano, o bem superior a todos os outros (Summum bonum). O conceito de Bem Soberano permite-nos tomar cautelas contra uma confusão entre bens subalternos (o Poder, as riquezas, a habilidade política, etc.) e o verdadeiro bem.

Para os epicuristas, por exemplo, o Bem Soberano é a felicidade, e a virtude (moral) é (alegadamente) o meio que a ela conduz. Para os estóicos, o Bem Soberano consiste num acordo com a Razão universal que governa a Natureza, acordo esse que leva necessariamente à felicidade.

Kant criticou ambas as posições (dos epicuristas e dos estóicos):

  • os epicuristas confundem “virtude” com “busca da felicidade” (que é o que se passa com o Laparoto) que, variando de indivíduo para indivíduo, não pode servir de base a nenhuma lei universal (não pode servir de base a nenhuma moral propriamente dita, porque os valores da ética são sempre universais), logo, nenhuma moralidade. Ou seja, os epicuristas e o Laparoto não adoptam nenhuma moralidade (são basicamente amorais, ou reduzem a moral ao Direito Positivo);
  • os estóicos identificam correctamente a “virtude” com a “rectidão da vontade”, mas identificam erradamente a “Razão” e a “Natureza” (porque existe uma determinada irracionalidade na Natureza, por exemplo, no mundo animal), e subestimam a força das inclinações sensíveis (por exemplo, a tendência ou a “inclinação sensível” que alguns homens têm de gostar de meter um pénis no orifício anal que serve naturalmente para cagar) — o que os leva a ignorar, ao mesmo tempo, as dificuldades sem atingir a virtude (moral) e a possibilidade de um divórcio entre a virtude e a felicidade.

Kant chegou à seguinte conclusão: agir moralmente não nos torna forçosamente felizes.

Por isso, Kant laborou em um novo conceito de Bem Soberano. Vamos imaginar um homem cuja vontade esteja incondicionalmente disposta a obedecer à virtude da lei moral.

1/ esse homem não deixa de ser um ser sensível que aspira igualmente à felicidade. A sua vontade deverá, por isso, lutar contra inclinações sensíveis que ameaçam permanentemente afastá-lo da pureza moral (por exemplo, lutar contra a sua, dele, inclinação sensível, dele, de tomar no cu de cavalos). Esse homem não será nunca um ser totalmente moral. Esta perspectiva leva-o a desesperar de atingir a moral.

2/ por outro lado, se ele sair vencedor dessa luta contra as suas inclinações sensíveis cavalares, e agir de forma moral, nada lhe assegura que tire daí qualquer benefício: a vontade humana não governa nem a ordem real deste mundo, nem a da Natureza. E, se é verdade que um homem que agisse tendo em vista a sua (dele) felicidade, não agiria de um modo propriamente moral (aquele homem seria feliz morrendo trespassado por pénis de um equídeo), parece, pelo contrário, verdadeiramente escandaloso (e inaceitável, para a Razão) que um homem que aja moralmente — e se torne assim digno da felicidade — não tire daí qualquer benefício.

Para resolver estas duas ordens de dificuldades, Kant afirma que a Razão deve exigir o Bem Soberano, ou seja, esperar que a lei universal vise realmente um Bem que, se não se realiza neste mundo, permite todavia um progresso moral indefinido, e assegura a reconciliação entre a virtude moral e a felicidade, num outro mundo que não este — a esperança numa vida futura e a crença na existência de um “legislador supremo” (Deus). Ou seja, o corolário da ética de Kant é Deus.

Quando Deus é retirado da equação ética, a moral conduz ao absurdo — como acontece com o Laparoto.

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